"A Vida dos Sons": deseja-se menos cinzenta e mais multicolor (II)
Na edição do programa
"http://www.rtp.pt/programa/episodios/radio/p4688" relativa ao ano de 1969, os assuntos de índole política e militar
continuaram a preponderar, de forma esmagadora e
sufocante.
De eventos culturais, apenas três
mereceram menção – festival de Woodstock; programa televisivo "Zip-Zip" e a
fundação dos Monty Python –, ainda assim sem o desejável desenvolvimento e
conveniente ilustração sonora. Por exemplo: teria sido de bom tom que se tivesse
passado a "Pedra Filosofal", que Manuel Freire estreou precisamente no
"Zip-Zip", e que ficou como um dos mais superlativos espécimes do nosso
património poético-musical; já quanto ao festival de Woodstock, ficou a faltar
um ou dois dos temas aí gravados mais emblemáticos do "flower power" (as flores
da paz e do amor contra a Guerra do Vietname).
Aqui se referenciam, para que conste, alguns eventos importantes do ano
de 1969 que foram (incompreensivelmente) omitidos:
1. Falecimento do escritor Alves Redol; paladino do neo-realismo e
um dos nomes maiores dessa corrente literária, é autor dos romances "Gaibéus",
"Avieiros", "Fanga", "Porto Manso", "Horizonte Cerrado", "A Barca dos Sete
Lemes", "Uma Fenda na Muralha" e "Barranco de Cegos", entre outros, sem esquecer
a peça de teatro "A Forja", uma das mais admiráveis abordagens dramáticas à
incontornável problemática da morte;
2. Falecimento do escritor José Régio; figura cimeira da
"Presença", distinguiu-se como poeta, dramaturgo, ficcionista e ensaísta; várias
das suas obras, entre as quais a peça "Benilde ou a Virgem Mãe", foram adaptadas
ao cinema por Manoel de Oliveira; haverá português (não troglodita) que nunca
tenha ouvido, por João Villaret, o celebérrimo "Cântico Negro"? [>>
YouTube];
3. Falecimento do fadista Carlos Ramos; começou como guitarrista
acompanhador (nomeadamente de Ercília Costa, numa digressão pelos Estados Unidos
da América, em 1939), afirmando-se depois como cantor, acompanhando-se a si
próprio à guitarra; a ele se devem algumas das mais brilhantes pérolas do
fado-canção, como o "Fado das Queixas" (letra de Frederico de Brito e música de
Carlos Rocha) [>> YouTube]
4. Falecimento do regente de orquestra suíço Ernest Ansermet;
maestro dos "Ballets Russes", de Diaghilev, a partir de 1915, fundou, três anos
mais tarde, em Genebra, a (que se tornaria famosa) Orchestre de la Suisse
Romande, à frente da qual se manteve até 1966; é o responsável por muitas
gravações de referência, sobretudo de Stravinski, Debussy e
Ravel;
5. Falecimento da actriz norte-americana Judy Garland; alcançou a
imortalidade ao encarnar a pequena Dorothy no filme "O Feiticeiro de Oz" (1939),
de Victor Fleming, onde canta "Over the Rainbow" [>> YouTube];
6. Atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao dramaturgo irlandês
Samuel Beckett; expoente máximo do teatro do absurdo, "En Entendant Godot"
("À Espera de Godot"), escrita em 1948, publicada em 1952 e levada à cena,
primeira vez, a 4 de Janeiro de 1953, no Théâtre de Babylone, em Paris, é a sua
peça mais emblemática e representada;
7. Edição do álbum "Contos Velhos, Rumos Novos", de José Afonso; é
o disco em que o cantautor se faz acompanhar, pela primeira vez, por outros
instrumentos além da viola – trompa, harmónica, cavaquinho, marimba, bombo – sem
esquecer uma voz feminina (Teresa Paula Brito) que participa no tema "Vai,
Maria, Vai" [>> YouTube]; deste belíssimo álbum, são de realçar: "Bailia" (sobre poema do
trovador medieval Airas Nunes) [>> YouTube]; "Qualquer Dia" (poema de Fernando Miguel Bernardes) [>>
YouTube], "Era de Noite e Levaram" (poema de Luís de Andrade Pignatelli)
[>> YouTube] e "Já o Tempo se Habitua" (poema e música de José Afonso) [>>
YouTube];
8. Edição do álbum "O Canto e as Armas", de Adriano Correia de
Oliveira; baseado em poemas do livro homónimo de Manuel Alegre, que então se
encontrava no exílio, o disco inclui espécimes de tocante beleza, tais como
"Canto da Nossa Tristeza" [ http://www.youtube.com/watch?v=6vPUTPzwSK0], "Trova do Vento Que Passa n.º 2" [>> YouTube] e "As Mãos" [>> YouTube];
9. Edição do álbum "Flores para Coimbra", de António Bernardino;
constituído maioritariamente por poemas de Manuel Alegre, musicados por António
Portugal e Francisco Filipe Martins, este é um disco referencial na história da
canção de Coimbra; "E Alegre se Fez Triste", "Canção do Exílio", "Fado para um
Amor Ausente", "Guitarras do Meu País", "Canto do Silêncio" e "Cantiga para os
Que Partem" (sobre poema da galega Rosalía de Castro, que Adriano Correia de
Oliveira gravaria no ano seguinte, com música de José Niza, sob o título "Cantar
de Emigração") [>>http://www.youtube.com/watch?v=3d05ukFMtao] contam-se entre a dúzia de temas do alinhamento;
10. Edição do álbum "Canções do Mar e da Vida", de Luiz Goes;
disco fundamental para a afirmação da balada de Coimbra, nele constam "Canção do
Regresso", "Cântico de um Pescador", "Boneca de Trapo", "Cantiga de um
Vagabundo" e esse verdadeiro hino de apelo à solidariedade e à fraternidade que
é "Homem Só, Meu Irmão" [>> YouTube];
11. Edição do álbum "Epopeia", da Filarmónica Fraude; do mítico e
meteórico grupo de António Avelar de Pinho (textos) e Luís Linhares (músicas), o
conceptual "Epopeia", centrado na época dos Descobrimentos, é um dos discos mais
singulares, arrojados e ambiciosos que se fizeram em Portugal; pode mesmo
dizer-se, sem exagero, que foi precursor desse autêntico colosso da música
portuguesa que é "Por Este Rio Acima" (1982), de Fausto Bordalo Dias; destaque
para os temas "Na Ilha Virgem", "Só Marinheiros e Escravos se Afundam com a Nau"
[>> YouTube], "Homenagem Póstuma", "Sebastião Morreu!" e "Os
Bem-Aventurados".
12. Fecundação 'in vitro', pela primeira vez, de um óvulo humano, pelo
fisiologista britânico Robert Geoffrey Edwards; primeiro e fundamental passo
para a ciência no capítulo da reprodução humana, que possibilitou o nascimento
do primeiro bebé-proveta, Louise Brown, em 1978; Robert Geoffrey Edwards será
galardoado com o Prémio Nobel da Medicina em 2010.
Todos, ou quase todos, estes itens podiam ser devidamente ilustrados, ora com registos do arquivo da RDP (entrevistas, adaptações de peças de teatro e de obras romanescas, recitações de poemas, etc.) ora, no caso de repertório musical, com gravações discográficas.
Não cabia tudo em 50 minutos? Problema nada difícil de resolver: em vez
de uma única edição (lacunar, espartilhada e cinzenta), façam duas – mais
completas, desafogadas e variegadas.
Renova-se o pedido: deseja-se que "A Vida dos Sons" seja menos cinzenta e
mais multicolor.
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