BALLADA ACADÉMICA
Música: autor desconhecido
Letra: autor desconhecido
Incipt: Voa guitarrada bela
Origem: Coimbra (?)
Data: década de 1890-1.ª década do século XX
Solista
Voa guitarrada bela,
Que pelas noites voando,
Os corações arrebatando,
À mais formosa donzela.
Fazendo em frase singela
A mais terna confissão
Ai que as nossas são os ais
E as cordas duma ilusão
Refrão
Voa sensação das guitarradas
Do belo fado e dos descantes
Que rua (e) fora, às namoradas
Solta de noite os estudantes
Solista
Toda a guitarra se encontra
A mais leve comoção
Que decerto faz palpitar
O mais rijo coração.
Por isso eu só estou contente
Letra: autor desconhecido
Incipt: Voa guitarrada bela
Origem: Coimbra (?)
Data: década de 1890-1.ª década do século XX
Solista
Voa guitarrada bela,
Que pelas noites voando,
Os corações arrebatando,
À mais formosa donzela.
Fazendo em frase singela
A mais terna confissão
Ai que as nossas são os ais
E as cordas duma ilusão
Refrão
Voa sensação das guitarradas
Do belo fado e dos descantes
Que rua (e) fora, às namoradas
Solta de noite os estudantes
Solista
Toda a guitarra se encontra
A mais leve comoção
Que decerto faz palpitar
O mais rijo coração.
Por isso eu só estou contente
Quando ouço os seus harpejos
E sinto entre os meus dedos
As suas cordas dar beijos.
Refrão
Voa sensação das guitarradas
Do belo fado e dos descantes
Que rua fora (e) fora, às namoradas
Solta de noite os estudantes.
Cantam-se a solo as duas primeiras quadras, sem repetições e sem separador. O refrão canta-se seguido e repete-se
Informação complementar:
Composição com refrão, em compasso ¾ e tom algo indefinido, entre o Ré# Maior e o Mi Maior na parte solada. O refrão é cantado em Mi menor. A dificuldade em determinar com mais propriedade a tonalidade deve-se à velocidade em que o disco terá sido gravado (76 rpm), ao desgaste dos sulcos e à distorção do som. Optou-se pela transcrição no tom de Mi.
Balada gravada pelo actor-cantor Jorge Bastos no disco de 76 rpm Homokord 9224, sem data (inícios do século XX). Não temos certezas quanto às rotações indicadas, e quanto à data de gravação, apontamos para o ano de 1911 com algum conforto. Na etiqueta constam dados relativos a "Coimbra" e menção a "acompanhamento a piano". O fonograma não referencia quaisquer dados sobre autoria de música nem de letra.
A estrutura musical está de acordo com as composições entoadas pelos estudantes da Universidade de Coimbra entre finais do século XIX e inícios do século XX:
a) Melodias estróficas, à base de quadras de sete sílabas, assentes no efeito de repetição, predominantemente silábicas (a cada nota musical corresponde uma sílaba). O compasso 2/4 era o preferido. Esquema usado na música erudita e em grande parte das canções/danças da música produzida, assimilada ou reproduzida pelas comunidades tradicionais portuguesas. Podiam ser cantadas a solo por tenores e barítonos, bizando estes os versos, os dísticos, ou dístico final, ou finalizando com a repetição do 1.º dístico. As repetições podiam ser feitas em coro, verso a verso ou por dísticos (em algumas composições tradicionalizadas na Ilha Terceira, Açores, as repetições de versos e de dísticos eram ainda mais sublinhadas;
b) canções de uma só parte musical, para tenores e barítonos, cuja melodia base era encaixada em duas quadras com versos de sete sílabas, sendo necessários oito versos para se cantar toda a melodia. Este esquema foi um dos mais praticados por Augusto Hilário na década de 1890, estando documentada a sua utilização em Coimbra desde a década de 1870;
c) canções que mantendo uma estrutura idêntica à descrita na alínea b), apresentavam um refrão destinado a ser cantado em coro nas serenatas dadas em Coimbra na época estival e pelos grupos de serenateiros que acompanhavam a Tuna Académica nas suas digressões pelas terras portuguesas e espanholas;
d) já o refrão em modo menor, solução herdada de oitocentos, não colheu a preferência dos cultores do século XX que optaram generalizadamente pelo modo maior.
Nesta composição ainda não encontramos sinal óbvio de ais neumáticos na transição dos versos ou dos dísticos, aportamento trazido à Canção de Coimbra por Manassés de Lacerda, cantor que se matriculou na 5.ª Classe dos Liceus, Liceu de Coimbra, no ano lectivo de 1900-1901 e que em 1904 obteve farto aplauso integrado em digressões da Tuna Académica. Os ais neumáticos passaram a constituir uma das referências auditivas e estéticas mais duradouras deste género artístico (só viriam a ser seriamente postos em causa pelas segundas vanguardas activas na década de 1960).
O intérprete faz uma subida sustentada, exercício vocal operático que integra o património da Canção de Coimbra na década de 1890. Este esquema não ocorre transversalmente em todas as composições, mas é reproduzido com muita frequência pelos cantores de referência da década, Augusto Hilário (também guitarrista), Alexandre Pinheiro Torres, António Caetano Macieira, Macário Ferreira e Cândido Pedro de Viterbo (que também era guitarrista).
Na presente composição, esta virtuosidade ariosa ocorre em dois momentos: no 2.º e no 4.º versos da segunda quadra e na repetição do refrão (4.º verso). Tal forma de vocalizar podia ser, e não raro era, enxertada em cançonetas ligeiras e nos fados acompanhados à guitarra, emprestando-lhes um ar sentimental e arioso que se tornou conhecidíssimo entre os estudantes do Porto, de Lisboa e dos liceus regionais e nas principais casas de teatro de Portugal e de Espanha onde actuava a Tuna Académica, organismo que invariavelmente preenchia os actos de variedades com "fados e guitarradas" interpretados em momentos distintos do espectáculo (segmentação que ainda aparece, não por mero acaso, na antologia discográfica coordenada por António Brojo e António Portugal, Tempos de Coimbra. Quatro Décadas no Canto e na Guitarra de Coimbra: 1984). Mas não só em palco. Nas terras onde faziam pernoita, membros da Tuna e das formações serenis davam veladas nocturnas ou serenatas onde também divulgavam o reportório serenateiro mais em voga e dele deixavam memória oral. Estas performances eram do tipo arruada ou passa calle, com a formações a desfilar em andamento lento, capas descaídas pelos ombros ou com a aba direita lançada por debaixo do sovaco, cordofones presos por cordéis, curiosos na peugada, empunhamento de archotes, mulheres às janelas. Um acontecimento social, como ainda hoje acontece em Conservatória, Brasil.
A presença da "grande música" na Canção de Coimbra era então uma constante entre os cantores e instrumentistas, havendo notícia destas incursões desde o precedente Ciclo da Banza. Na década de 1890 os guitarristas convidados pela Tuna quando detentores de alguma ilustração musical tocavam em palco reportório de autores clássicos. A "Fantasia" da Traviata de Verdi era número obrigatório. Fazendo fé da individualidade e autonomia estética da Canção de Coimbra na década de 1890, lei-se a seguinte apreciação jornalística dos fados e guitarradas interpretados numa digressão da Tuna Académica ao Alto Minho. Assim, na actuação em Guimarães no dia um de Março de 1897: "Os fados de Coimbra têm uma vaga melancolia que agita os nervos; um tic que não se imita facilmente" [Cf. António Nascimento e José Nascimento - Sobre a Tuna Académica da Universidade de Coimbra. 1888-1913.
In: Estudantes de Coimbra em Orquestra. Tuna Académica da Universidade de Coimbra (1888-1913) e Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra. Coimbra: AATUC, Dezembro de 2010].
Este "tic" operático encontra-mo-lo em discos gravados no Brasil, por artistas brasileiros que nos alvores do século XX fazem prova de conhecer temas do reportório conimbricense. Encontra-mo-lo também em fados tirados do reportório fadístico que inundava o país. Como é que estes fados chegavam a Coimbra ou eram conhecidos em Coimbra?
Lembremos:
-comércio de partituras musicais impressas e vendidas pelas mais importantes casas do género de Lisboa e do Porto, em folhetos soltos, brochuras e fascículos;
-reprodução oral do reportório dos ceguinhos ambulantes que percorriam as feiras e romarias do país com os seus fados narrativos que contavam facécias de faca e de alguidar em tom melodramático, cantando, tocando e vendendo folhas volantes;
-reprodução oral do reportório divulgado pelos grupos de teatro que percorriam as casas de espectáculos provinciais;
-reprodução dos fados coreográficos que se dançavam na maior parte das províncias portuguesas e muito particularmente nos povoados da Beira Litoral (conforme os locais, batidos, mandados, furados), que além das figuras coreográficas e da diversidade dos instrumentos de acompanhamento, podiam ser cantados com duas linhas melódicas, uma feita pela cantadeira, outra protagnonizada pela voz masculina;
-ensaio e reprodução pelas mais variadas formações musicais de estudantes e de populares activas em Coimbra (tunas, tocatas de ranchos populares, grupos ligados a actos de variedades de teatro amador);
-composições locais de novos fados situados na troncatura melo-rítmica do Fado. Os fados podiam ser vocalizados pelos estudantes de Coimbra "tel quel", como acontecia com o Fado Corrido de Coimbra que ainda hoje se canta e grava, e com o Fado dos Cegos (Sou ceguinho de nascença), mas a prática mais frequente consistia em emprestar a esses fados uma ligeira metaformose que continha os seguintes ingredientes:
1) substituição da letra original (caso existisse. Nos fados de Lisboa as letras variavam conforme o gosto dos cantores) por quadras consideradas de algum fulgor literário;
2) utilização generalizada da pronúncia conimbricense;
3) ostentação de espectacular subida operática na repetição do verso final da quadra ou do 2.º dístico da quadra. É o que acontece com dois bons testemunhos arquefonográficos efectuados na década de 1920, que fixam temas trabalhados entre finais do século XIX e os alvores do século XX: o Fado Sepúlveda (Dizem que amar é viver), na lição gravada por Lucas Junot em 1927, e o Fado Antigo (Saudades de amor, quem há-de), na lição gravada por José Paradela de Oliveira. Ambos são fados de Lisboa, ambos apresentam parentela musical (quem ouve um logo se lembra do outro, exercício conservador de criação/replicação que também ocorre no Tango). O título apresentado por Paradela de Oliveira, Fado Antigo, não corresponde propriamente ao título original da composição. É uma designação atribuída por Paradela de Oliveira que pretende dizer mais ou menos isto: "eu não sei qual é o título deste fado, nem quem é o seu autor, mas canto-o no estilo antigo de Coimbra, quero dizer, como se cantavam os fados antes das transformações implementadas pelo Manassés".
A "elevação" dos temas, invocada pelos cronistas do tempo, o recorte literário dos textos e a propensão ariosa das melodias faziam com que as composições enformantes da Canção de Coimbra fossem cantadas pelas damas da boa sociedade aristocrática e burguesa nos salões, por actores-cantores de teatro activos em Lisboa e no Porto e por vozes portuguesas do bel canto como Moisés [Maurício] Bensaúde (1863-1912), que gravou o primitivo Fado Serenata do Hylario, ou pelo aclamado barítono Luiz Macieira.
As primitivas gravações comerciais de reportório da Canção de Coimbra efectuadas por vozes do bel canto e por actores-cantores em Portugal e no Brasil a partir de finais de 1900 revestem-se de incontornável interesse.
Permitem conhecer com elevado rigor as técnicas de vocalização e de toque utilizadas antes da entrada em cena dos grandes divos da década de 1920 e individualizar propostas estéticas pouco conhecidas que não podem ser (re)conhecidas por via das partituras existentes. Ilustram bem este exercício as gravações deixadas por Maurício Bensaúde, António de Almeida Cruz, Avelino Baptista ou Luiz Macieira.
Vejamos o caso do celebrado barítono açoriano Maurício Bensaúde que percorreu os principais palcos da Europa e trabalhou nos EUA. Em 1905, Bensaúde gravou para a Zonophone uma quantidade assinalável de melodias, cinco das quais eram reportório activo da Canção de Coimbra. Deste universo conhecemos apenas a matriz contendo o Fado Serenata do Hylario, que nos foi disponibilizada pelo Dr. Jorge Rino. O que se pode dizer é que a vocalização está dentro dos parâmetros conimbricenses do tempo. Bensaúde e os seus colegas aprendiam o reportório conimbricense através da compra de partituras impressas e nos momentos de digressão das formações musicais conimbricenses. Nas actuações da Tuna Académica e do Orfeon Académico era comum os presidentes destas agremiações chamarem ao palco artistas profissionais que se encontravam nas salas e pedir-lhes que cantassem a solo, tocassem no piano ou cantassem em coro reportório em voga.
Vejamos algumas das composições gravadas por Bensaúde, que resultaram de recriação a partir das solfas do Cancioneiro de Musicas Populares de César das Neves, excepto a obra de Augusto Hilário que foi aprendida por via de Alexandre Rey Colaço:
-NOITE SERENA, Zon. 14002
-FADO DE COIMBRA, Zon. 14006
-FADO SERENATA DO HYLARIO, Zon. 14007
-FILHAS DO GUADALQUIVIR, Zon. 14023
-DESPEDIDA DE COIMBRA, Zon. 14024
(Cf. Ethnic Music on Records. Spanish, Portuguese, Philipine, Basque. Volume
4. University of Illinois Press, 1990, pp. 2453-2454,
http://books.google.pt/books?id=qNh8VBZHQ2YC&pg=PA2453&lpg=PA2453&dq=discography).
Voltemos a Ballada Académica. A letra vocalizada no fonograma, tirada de outiva, parece-nos um pouco "macarrónica". Algumas das palavras cantadas por Jorge Bastos são praticamente ininteligíveis. Traços da fonética nortenha parecem audivéis ao longo do fonograma: "boa", no lugar de "voa", imperativo do verbo voar no 1.º verso do refrão; "ô-u", no ditongo inicial de "ouço" ("ô-sso", na fonética coimbrã). A transcrição aqui apresentada é um exercício marcado por dúvidas.
Jorge Bastos foi um aplaudido actor de teatro de revista activo nos anos finais da Monarquia Constitucional e na Primeira República. Possivelmente natural do Porto. Gravou diversos discos, entre os quais «Disco do Segredo da Revista Rosa Tyrana», cantado por Jorge Bastos e coro, editado pela Casa Victoria/Centro Phonographico, Porto, Rua de Santa Catarina, n.º 4, que trazia na outra face «Adelaides e Cartolinhas».
Como peça de rua que também foi, um exercício de reconstituição de Ballada Académica deveria considerar solista masculino, coro e presença de instrumentos que recriem a paisagem sonora da Belle Époque, nomeadamente guitarra, violão de cordas de aço e violino.
Matriz facultada pelo Dr. Jorge Rino em Dezembro de 2010.
E sinto entre os meus dedos
As suas cordas dar beijos.
Refrão
Voa sensação das guitarradas
Do belo fado e dos descantes
Que rua fora (e) fora, às namoradas
Solta de noite os estudantes.
Cantam-se a solo as duas primeiras quadras, sem repetições e sem separador. O refrão canta-se seguido e repete-se
Informação complementar:
Composição com refrão, em compasso ¾ e tom algo indefinido, entre o Ré# Maior e o Mi Maior na parte solada. O refrão é cantado em Mi menor. A dificuldade em determinar com mais propriedade a tonalidade deve-se à velocidade em que o disco terá sido gravado (76 rpm), ao desgaste dos sulcos e à distorção do som. Optou-se pela transcrição no tom de Mi.
Balada gravada pelo actor-cantor Jorge Bastos no disco de 76 rpm Homokord 9224, sem data (inícios do século XX). Não temos certezas quanto às rotações indicadas, e quanto à data de gravação, apontamos para o ano de 1911 com algum conforto. Na etiqueta constam dados relativos a "Coimbra" e menção a "acompanhamento a piano". O fonograma não referencia quaisquer dados sobre autoria de música nem de letra.
A estrutura musical está de acordo com as composições entoadas pelos estudantes da Universidade de Coimbra entre finais do século XIX e inícios do século XX:
a) Melodias estróficas, à base de quadras de sete sílabas, assentes no efeito de repetição, predominantemente silábicas (a cada nota musical corresponde uma sílaba). O compasso 2/4 era o preferido. Esquema usado na música erudita e em grande parte das canções/danças da música produzida, assimilada ou reproduzida pelas comunidades tradicionais portuguesas. Podiam ser cantadas a solo por tenores e barítonos, bizando estes os versos, os dísticos, ou dístico final, ou finalizando com a repetição do 1.º dístico. As repetições podiam ser feitas em coro, verso a verso ou por dísticos (em algumas composições tradicionalizadas na Ilha Terceira, Açores, as repetições de versos e de dísticos eram ainda mais sublinhadas;
b) canções de uma só parte musical, para tenores e barítonos, cuja melodia base era encaixada em duas quadras com versos de sete sílabas, sendo necessários oito versos para se cantar toda a melodia. Este esquema foi um dos mais praticados por Augusto Hilário na década de 1890, estando documentada a sua utilização em Coimbra desde a década de 1870;
c) canções que mantendo uma estrutura idêntica à descrita na alínea b), apresentavam um refrão destinado a ser cantado em coro nas serenatas dadas em Coimbra na época estival e pelos grupos de serenateiros que acompanhavam a Tuna Académica nas suas digressões pelas terras portuguesas e espanholas;
d) já o refrão em modo menor, solução herdada de oitocentos, não colheu a preferência dos cultores do século XX que optaram generalizadamente pelo modo maior.
Nesta composição ainda não encontramos sinal óbvio de ais neumáticos na transição dos versos ou dos dísticos, aportamento trazido à Canção de Coimbra por Manassés de Lacerda, cantor que se matriculou na 5.ª Classe dos Liceus, Liceu de Coimbra, no ano lectivo de 1900-1901 e que em 1904 obteve farto aplauso integrado em digressões da Tuna Académica. Os ais neumáticos passaram a constituir uma das referências auditivas e estéticas mais duradouras deste género artístico (só viriam a ser seriamente postos em causa pelas segundas vanguardas activas na década de 1960).
O intérprete faz uma subida sustentada, exercício vocal operático que integra o património da Canção de Coimbra na década de 1890. Este esquema não ocorre transversalmente em todas as composições, mas é reproduzido com muita frequência pelos cantores de referência da década, Augusto Hilário (também guitarrista), Alexandre Pinheiro Torres, António Caetano Macieira, Macário Ferreira e Cândido Pedro de Viterbo (que também era guitarrista).
Na presente composição, esta virtuosidade ariosa ocorre em dois momentos: no 2.º e no 4.º versos da segunda quadra e na repetição do refrão (4.º verso). Tal forma de vocalizar podia ser, e não raro era, enxertada em cançonetas ligeiras e nos fados acompanhados à guitarra, emprestando-lhes um ar sentimental e arioso que se tornou conhecidíssimo entre os estudantes do Porto, de Lisboa e dos liceus regionais e nas principais casas de teatro de Portugal e de Espanha onde actuava a Tuna Académica, organismo que invariavelmente preenchia os actos de variedades com "fados e guitarradas" interpretados em momentos distintos do espectáculo (segmentação que ainda aparece, não por mero acaso, na antologia discográfica coordenada por António Brojo e António Portugal, Tempos de Coimbra. Quatro Décadas no Canto e na Guitarra de Coimbra: 1984). Mas não só em palco. Nas terras onde faziam pernoita, membros da Tuna e das formações serenis davam veladas nocturnas ou serenatas onde também divulgavam o reportório serenateiro mais em voga e dele deixavam memória oral. Estas performances eram do tipo arruada ou passa calle, com a formações a desfilar em andamento lento, capas descaídas pelos ombros ou com a aba direita lançada por debaixo do sovaco, cordofones presos por cordéis, curiosos na peugada, empunhamento de archotes, mulheres às janelas. Um acontecimento social, como ainda hoje acontece em Conservatória, Brasil.
A presença da "grande música" na Canção de Coimbra era então uma constante entre os cantores e instrumentistas, havendo notícia destas incursões desde o precedente Ciclo da Banza. Na década de 1890 os guitarristas convidados pela Tuna quando detentores de alguma ilustração musical tocavam em palco reportório de autores clássicos. A "Fantasia" da Traviata de Verdi era número obrigatório. Fazendo fé da individualidade e autonomia estética da Canção de Coimbra na década de 1890, lei-se a seguinte apreciação jornalística dos fados e guitarradas interpretados numa digressão da Tuna Académica ao Alto Minho. Assim, na actuação em Guimarães no dia um de Março de 1897: "Os fados de Coimbra têm uma vaga melancolia que agita os nervos; um tic que não se imita facilmente" [Cf. António Nascimento e José Nascimento - Sobre a Tuna Académica da Universidade de Coimbra. 1888-1913.
In: Estudantes de Coimbra em Orquestra. Tuna Académica da Universidade de Coimbra (1888-1913) e Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra. Coimbra: AATUC, Dezembro de 2010].
Este "tic" operático encontra-mo-lo em discos gravados no Brasil, por artistas brasileiros que nos alvores do século XX fazem prova de conhecer temas do reportório conimbricense. Encontra-mo-lo também em fados tirados do reportório fadístico que inundava o país. Como é que estes fados chegavam a Coimbra ou eram conhecidos em Coimbra?
Lembremos:
-comércio de partituras musicais impressas e vendidas pelas mais importantes casas do género de Lisboa e do Porto, em folhetos soltos, brochuras e fascículos;
-reprodução oral do reportório dos ceguinhos ambulantes que percorriam as feiras e romarias do país com os seus fados narrativos que contavam facécias de faca e de alguidar em tom melodramático, cantando, tocando e vendendo folhas volantes;
-reprodução oral do reportório divulgado pelos grupos de teatro que percorriam as casas de espectáculos provinciais;
-reprodução dos fados coreográficos que se dançavam na maior parte das províncias portuguesas e muito particularmente nos povoados da Beira Litoral (conforme os locais, batidos, mandados, furados), que além das figuras coreográficas e da diversidade dos instrumentos de acompanhamento, podiam ser cantados com duas linhas melódicas, uma feita pela cantadeira, outra protagnonizada pela voz masculina;
-ensaio e reprodução pelas mais variadas formações musicais de estudantes e de populares activas em Coimbra (tunas, tocatas de ranchos populares, grupos ligados a actos de variedades de teatro amador);
-composições locais de novos fados situados na troncatura melo-rítmica do Fado. Os fados podiam ser vocalizados pelos estudantes de Coimbra "tel quel", como acontecia com o Fado Corrido de Coimbra que ainda hoje se canta e grava, e com o Fado dos Cegos (Sou ceguinho de nascença), mas a prática mais frequente consistia em emprestar a esses fados uma ligeira metaformose que continha os seguintes ingredientes:
1) substituição da letra original (caso existisse. Nos fados de Lisboa as letras variavam conforme o gosto dos cantores) por quadras consideradas de algum fulgor literário;
2) utilização generalizada da pronúncia conimbricense;
3) ostentação de espectacular subida operática na repetição do verso final da quadra ou do 2.º dístico da quadra. É o que acontece com dois bons testemunhos arquefonográficos efectuados na década de 1920, que fixam temas trabalhados entre finais do século XIX e os alvores do século XX: o Fado Sepúlveda (Dizem que amar é viver), na lição gravada por Lucas Junot em 1927, e o Fado Antigo (Saudades de amor, quem há-de), na lição gravada por José Paradela de Oliveira. Ambos são fados de Lisboa, ambos apresentam parentela musical (quem ouve um logo se lembra do outro, exercício conservador de criação/replicação que também ocorre no Tango). O título apresentado por Paradela de Oliveira, Fado Antigo, não corresponde propriamente ao título original da composição. É uma designação atribuída por Paradela de Oliveira que pretende dizer mais ou menos isto: "eu não sei qual é o título deste fado, nem quem é o seu autor, mas canto-o no estilo antigo de Coimbra, quero dizer, como se cantavam os fados antes das transformações implementadas pelo Manassés".
A "elevação" dos temas, invocada pelos cronistas do tempo, o recorte literário dos textos e a propensão ariosa das melodias faziam com que as composições enformantes da Canção de Coimbra fossem cantadas pelas damas da boa sociedade aristocrática e burguesa nos salões, por actores-cantores de teatro activos em Lisboa e no Porto e por vozes portuguesas do bel canto como Moisés [Maurício] Bensaúde (1863-1912), que gravou o primitivo Fado Serenata do Hylario, ou pelo aclamado barítono Luiz Macieira.
As primitivas gravações comerciais de reportório da Canção de Coimbra efectuadas por vozes do bel canto e por actores-cantores em Portugal e no Brasil a partir de finais de 1900 revestem-se de incontornável interesse.
Permitem conhecer com elevado rigor as técnicas de vocalização e de toque utilizadas antes da entrada em cena dos grandes divos da década de 1920 e individualizar propostas estéticas pouco conhecidas que não podem ser (re)conhecidas por via das partituras existentes. Ilustram bem este exercício as gravações deixadas por Maurício Bensaúde, António de Almeida Cruz, Avelino Baptista ou Luiz Macieira.
Vejamos o caso do celebrado barítono açoriano Maurício Bensaúde que percorreu os principais palcos da Europa e trabalhou nos EUA. Em 1905, Bensaúde gravou para a Zonophone uma quantidade assinalável de melodias, cinco das quais eram reportório activo da Canção de Coimbra. Deste universo conhecemos apenas a matriz contendo o Fado Serenata do Hylario, que nos foi disponibilizada pelo Dr. Jorge Rino. O que se pode dizer é que a vocalização está dentro dos parâmetros conimbricenses do tempo. Bensaúde e os seus colegas aprendiam o reportório conimbricense através da compra de partituras impressas e nos momentos de digressão das formações musicais conimbricenses. Nas actuações da Tuna Académica e do Orfeon Académico era comum os presidentes destas agremiações chamarem ao palco artistas profissionais que se encontravam nas salas e pedir-lhes que cantassem a solo, tocassem no piano ou cantassem em coro reportório em voga.
Vejamos algumas das composições gravadas por Bensaúde, que resultaram de recriação a partir das solfas do Cancioneiro de Musicas Populares de César das Neves, excepto a obra de Augusto Hilário que foi aprendida por via de Alexandre Rey Colaço:
-NOITE SERENA, Zon. 14002
-FADO DE COIMBRA, Zon. 14006
-FADO SERENATA DO HYLARIO, Zon. 14007
-FILHAS DO GUADALQUIVIR, Zon. 14023
-DESPEDIDA DE COIMBRA, Zon. 14024
(Cf. Ethnic Music on Records. Spanish, Portuguese, Philipine, Basque. Volume
4. University of Illinois Press, 1990, pp. 2453-2454,
http://books.google.pt/books?id=qNh8VBZHQ2YC&pg=PA2453&lpg=PA2453&dq=discography).
Voltemos a Ballada Académica. A letra vocalizada no fonograma, tirada de outiva, parece-nos um pouco "macarrónica". Algumas das palavras cantadas por Jorge Bastos são praticamente ininteligíveis. Traços da fonética nortenha parecem audivéis ao longo do fonograma: "boa", no lugar de "voa", imperativo do verbo voar no 1.º verso do refrão; "ô-u", no ditongo inicial de "ouço" ("ô-sso", na fonética coimbrã). A transcrição aqui apresentada é um exercício marcado por dúvidas.
Jorge Bastos foi um aplaudido actor de teatro de revista activo nos anos finais da Monarquia Constitucional e na Primeira República. Possivelmente natural do Porto. Gravou diversos discos, entre os quais «Disco do Segredo da Revista Rosa Tyrana», cantado por Jorge Bastos e coro, editado pela Casa Victoria/Centro Phonographico, Porto, Rua de Santa Catarina, n.º 4, que trazia na outra face «Adelaides e Cartolinhas».
Como peça de rua que também foi, um exercício de reconstituição de Ballada Académica deveria considerar solista masculino, coro e presença de instrumentos que recriem a paisagem sonora da Belle Époque, nomeadamente guitarra, violão de cordas de aço e violino.
Matriz facultada pelo Dr. Jorge Rino em Dezembro de 2010.
NOTA: se algum dos utilizadores/leitores do Blogue Guitarra de Coimbra IV conhecer esta letra ou variante dela por via da tradição oral, de qualquer outra fonte impressa ou registo fonográfico, agradecemos que nos faça chegar informação para actualização da presente ficha de inventário.
Transcrição: Octávio Sérgio (2011)
Pesquisa e texto: José Anjos de Carvalho e António M. Nunes
Agradecimentos: Dr. Jorge Rino, Dr. António Nascimento, José Moças (TradiSom)
Etiquetas: Partituras de Fado
1 Comentários:
Uma breve nota sobre a tonalidade: até por volta de 1915, a velocidade em que os discos eram gravados variava por vezes substancialmente daquela que poderia ser indicada no rótulo, por despreocupação dos técnicos de som ou instabilidade das máquinas de gravação, ou até uma combinação de ambos os factores. Serve em casos extremos, onde há pouca margem para dúvidas que a rotação "oficial" está errada, seguir o "ouvido" para fazer algum ajuste à rotação ou à velocidade, dentro daquilo que soe mais ou menos natural; as velocidades reais poderiam estar algures entre cerca de 70 a 80 rotações, pouco mais ou menos.
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