sábado, 2 de abril de 2011

A Canção de Coimbra no século XIX (1840-1900)

VI. Sinais da protocanção de Coimbra (da 2ª metade do séc. XVIII à década de 1840)


Por António M. Nunes
São pouco abundantes as referências documentais à música e prática de instrumentos musicais nos meios estudantis para juzante do século XVIII.
Uma das mais antigas referências “etnográficas” encontra-se dispersa na Comédia Eufrósina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos,  publicada em 1555, mas escrita por volta de 1542. As alusões aos estudantes nesta obra são bem pouco lisonjeiras. Ali se fala em madrigais e no uso da “viola” de arame.
No longo poema, Relação da jornada que os estudantes fizeram à fronteira do Alentejo, em 6 de Novembro de 1645, por ordem de Sua Magestade, sendo Reitor da Universidade Manuel de Saldanha de gloriosa memória, encontramos breves referências a instrumentos, nos versos “(...) nem minha voz suspira, por plectro nem por cítara nem lira, dá-me uma sanfonina, de meu assunto e de meu canto digna, instrumento de cego” (...)[1].
António Ribeiro Sanches, que tocava cítara, frequentou a Universidade nos anos de 1716 a 1719. Recordando esse tempo, no Método para aprender a estudar a Medicina, diz Ribeiro Sanches a popósito dos passatempos estudantis:
 “Conheci muitos, que se levantavam somente da cama para o jantar, estando de boa saúde, outros passando dia e noite a tocar instrumentos musicais, a jogar às cartas e a fazer versos”.
E mais adiante:
“Também vi homens de maior idade, sem professarem mais que a vida de feição e galanteio virem de Lisboa e das províncias passar o inverno a Coimbra, logeados com estudantes, na intenção de se divertirem; nunca lhes faltou companhia de jogar, glosar motes, tocar instrumentos, dançar e consumir o tempo na conversação dos equívocos e dos repentes”.
Na bárdica glosa dos motes e no dedilho da guitarra talvez possamos incluir António José da Silva, dito O Judeu, luso-brasileiro que frequentou Cânones entre um de Outubro de 1722 e 1725[2]. Onde terá ido buscar O Judeu os conhecimentos técnicos com que em 1737 cinzelou o soneto “Primas, que na guitarra da constância”, declamado na estreia de Guerras do Alecrim e Mangerona? “Primas” era coisa muito cantada em redondilhas populares, a propósito das violas de arame, poderá objectar-se. Mas, seriam vulgares os termos “contraponto”, “contraprima”, “porpontos”, “terceiras”, “cavalete”, “encordoais”, “cravelha”, “trasto”?
Em 1746 veio a lume a primeira edição impressa do célebre Palito Métrico, poema heróico-cómico da autoria de António Duarte Ferrão (Palito Metrico, Coimbra, No Real Collegio da Companhia de Jesus, Anno de 1746).
Na edição de 1765 foram acrescentados novas produções poéticas ao texto original. No poema “Quexumina”, o autor emprega as palavras “tunantem e tunanti”, em óbvia alusão a práticas tunas. Em “Festa Bacchanalia”, um tal J. J. C. P., alude a estúrdias de carnaval: “fervente folia, jamque lyrae, & citharae magno descante tabernis”. E mais adiante, em “Caramunhatio Beberronica” referenciam-se oiteiros conventuais e modinhas: “Nolo tuos cantus, vai la cantare por esses oiteiris; variis garganteando modilhis”.
Na “Instrução breve e proveitosos ditames que deu um tratante de Lisboa a seu filho, querendo-o mandar para Coimbra no ano de novato”, o caloiro é aconselhado a aprender flauta, rabeca e passos do minueto. Nos convívios em casa de estudantes, o documento citado, fala de modas cantadas, tipo, “Bela arma mísera”, rabecas e machinhos (cavaquinhos, tocados por estudantes de Braga). Com estes instrumentos se frequentavam e animavam outeiros conventuais, festas de salão e “concertos fora de porta” (serenatas).
Integravam a impressão de 1765 “Conselhos para novatos”, de Paulo Moreno Toscano[3]. Ao descrever a sua vida académica, o autor recordava que a falta de habilidade para a poesia o conduzira à aprendizagem da flauta travessa. Para tanto fez-se aluno de um mestre de música, com quem treinou marchas e minuetos franceses e italianos, tirados de um livro. Posteriormente, Paulo Toscano dedicou-se à prática da rabeca, continuando a executar as aludidas marchas e minuetos. No terceiro ano do curso, continuou o estudo da flauta e rabeca, tendo aprendido rudimentos de francês e italiano para melhor compreender as letras das marchas, minuetes e sonatas, pois os livros de música utilizados pelo seu mestre estavam escritos nessas línguas.
As informações deixadas por Paulo Toscano são demasiado breves e fragmentárias para ajudarem a tecer com segurança um esforço de caracterização dos reportórios musicais estudantis em voga nos finais do século XVIII, embora façam luz sobre o tipo de instrumentos utilizados e géneros musicais mais cultivados.
A vivência quotidiana e os gostos musicais de Paulo Toscano parecem não diferir daqueles que foram experimentados pelo fidalgote e estudante de Leis Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Menezes, oriundo de Vila Real. Domingos Botelho, avô de Camilo Castelo Branco, cursou Leis até 1767, sendo conhecido localmente pela alcunha de Brocas. Em anotação ao romance Amor de Perdição (1862), Camilo recorda que o seu avô fora o mais notável executante de flauta travessa da sua geração, e que a tocar flauta se sustentou durante dois anos, no intuito bem sucedido de suprir o corte da mesada paterna[4].
Coevo de Paulo Moreno Toscano e de Domingos Botelho foi o poeta, executante de viola de arame e cantor de modinhas e lunduns Domingos Caldas Barbosa. Caldas Barbosa nasceu no Rio de Janeiro cerca de 1737 e frequentou a Faculdade de Cânones entre 1763 e 1768.
É pouco plausível que o Padre Caldas Barbosa não tenha exercitado os seus dotes artísticos aquando da sua breve passagem por Coimbra, interpretando modinhas vulgares a solo. Em 1768 fixou residência em Lisboa, cidade onde frequentou a alta sociedade e se tornou afamado poeta repentista, cantor e executante de viola de arame.
Sócio da Arcádia de Roma (1777), presidente da Nova Arcádia (1790), capelão da Casa da Suplicação, Caldas Barbosa faleceu em Lisboa, no dia 9 de Novembro de 1800.
O Lereno soía juntar-se às quartas feiras na sede da Nova Arcádia, com colegas declamadores de poesia, ali cantando e tocando na banza (viola de arame) lunduns, modinhas e fandangos, sendo acompanhado pelo seu compatriota mulato Joaquim Manuel em viola de arame e bandurra (guitarra), e pelo padre Joaquim Franco de Araújo Barbosa (voz e viola de arame). Em sonetos assassinos, escritos entre 1791 e 1797, Bocage lançou sobre Domingos Caldas Barbosa e Joaquim Manuel os mais tremendos opróbios racistas[5].
No ano de 1768 ingressou na Faculdade de Teologia José Domingos Maurício, figura grada do meio musical local, conhecido autor de modinhas. José Maurício nasceu na cidade de Coimbra em 10 de Março de 1752, filho de Manuel Luís da Assunção e de Rosa Maria de Santa Teresa[6]. Bom cantor, com registo vocal de baixo, foi organista titular da Sé da Guarda e posteriormente do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
Leccionou uma aula de música no Paço Episcopal e em 1802 passou a reger a cadeira de Música da Universidade. Autor de várias sonatas e modinhas, mestre do artista de salões e executante de viola toeira Manuel da Paixão Ribeiro, Maurício dominava com grande maestria a rabeca e todos os instrumentos de arco, tendo grangeado fama os concertos vocais e instrumentais dados na sua residência, onde se podiam apreciar peças de Haydn e Mozart.
Aquando da invasão de Coimbra pelas tropas francesas de Massena, José Maurício fugiu para Lisboa (Dezembro de 1810). Expulsos os franceses, retomou os seus afazeres profissionais e artísticos, tendo falecido vítima de apoplexia na praia da Figueira da Foz em 19 de Setembro de 1815.
Na década de 1780 celebrizou-se o boémio Francisco da Silveira Malhão. Durante os anos em que frequentou o curso de Leis, de 1783 a 1789, Malhão sustentou a sua magra bolsa com esmolas e concertos de viola de arame e guitarra. Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, de seu nome completo, nasceu em Óbidos a 22 de Setembro de 1757, filho de Agostinho da Silveira e de Maria da Conceição Dinis. Concluída a formatura abriu banca de advogado em Óbidos, localidade onde veio a falecer em 1816. Entre 1792 e 1797 publicou as suas memórias autobiográficas, nas quais evoca os tempos de Coimbra[7].
É precisamente nos tomos um e dois que o Malhão Velho descreve a sua faceta de cantor, poeta repentista, tocador de viola de arame e executante de guitarra. Percorrendo a reedição de 1824, verifica-se que o memorialista apenas cita uma única vez a viola, enquanto fala da guitarra pelos menos sete vezes (op. cit. Tomo I, págs. 176, 209, 223, 224; Tomo II, págs. 6, 7, 8, 119).
O Malhão Velho nunca entra em pormenores sobre a descrição dos cordofones, pelo que não sabemos se utilizava a guitarra inglesa ou a guitarra-cítara. Sabemos, outrossim, que nas horas e dias de ócio entrou em diversas “funções” e “folias” (festas, divertimentos), outeiros conventuais, festas de doutoramente, bailes de salão, saraus nocturnos junto à portaria dos Colégios de São Pedro, Militares e São Paulo-o-Apóstolo (Tomo II, págs. 6,7, 94, 119), tendo permanentemente no seu quarto da Rua da Trindade uma guitarra e uma viola. Rara era a noite, no dizer do memorialista, em que não percorria a Alta, a Rua das Cozinhas e outros espaços, com a guitarra, tocando, cantado a solo e a duo, improvisando décimas e odes à beleza da irresistível Márcia, aos olhos, à vida pastoril, ao amor, aos passarinhos, aos fontanários. Tocou em diversas localidades, entre elas, Coimbra e arredoras, Sendelgas, Lorvão, Celas, Lisboa, Torres Vedras (Tomo I, págs. 209-210). Assume-se como um tocador ao estilo dos descantes populares, com particular habilidade para cantar e improvisar trovas (Tomo I, pág. 224). Frequentando o segundo ano, chegou a cantar a duo com António Pereira de Sousa Caldas (Tomo II, págs. 117-118).
Transcrevemos, dentre os múltiplos poemas do Malhão Velho, a ode Márcia, que o serenateiro e folgazão cantava à guitarra (Tomo I, págs. 225-226):

Amor vive n’alma
De Márcia escondido
E Márcia em amor
Se tem convertido
Dos olhos a Deos
As settas nos chove
Se fala, Cupido
A língua lhe move
As Graças de roda
As asas pulsando
Dos beiços rosados
Se estão pendurando
As vezes as tranças
Lhe ennastrão com flores
Que alegres ministrão
Contentes amores
Rendidas vontades
Aos pés lhe suspirão
Ardentes desejos
Em torno lhe girão
Mas tanto as lições
Tem delle aprendido
Que até se fez duro
O novo Cupido.
A estadia do Malhão Velho em Coimbra coincide com o magistério de José Maurício e com a publicação o método de viola de arame: Nova Arte de Viola que ensina a tocalla com fundamento e sem mestre (...) e com alguns Minuettes e Modinhas por Musica de cifra, 1789. Manuel da Paixão Ribeiro foi mestre de Gramática Latina, de ler, escrever e contar. Discípulo de José Maurício, estudou pelas obras impressas de J. Rousseau (Dicionário de Música) e Rameau (Elementos de música). A afinação da viola toeira e o repertório musical impresso por Ribeiro na Nova Arte de Viola apontam para uma sociabilidade de salão, nada dizendo sobre os toques populares e as cantorias de rua.
Nestes anos terminais do século XVIII e de inícios do século XIX há notícias da ocorrência de serenatas académicas celebrativas da entrada do Ano Novo, realizadas por instrumentistas e cantores oriundos de províncias distantes que se viam na contingência de passar as férias de Natal em Coimbra. Costumavam juntar-se nalgumas tabernas da Alta onde soía armar-se presépio e confeccionar a consoada. Terminada a consoada e venerado o presépio, começava a serenata, indo os cantores e tocadores em rancho, ruas adiante até ao Penedo da Meditação ou margens do Mondego, locais onde por entre merendas e cantorias aguardavam festivamente o romper da manhã de Ano Novo.
Pinto de Carvalho logrou recolher apontamentos sobre a serenata realizada na transição de 31 de Dezembro de 1799 para a madrugada de 1 de Janeiro de 1800, embora confunda as violas toeiras com guitarras e não deixe claro se tal ocorrência musical e festiva foi realmente uma simples pândega nocturna ou uma serenata[8]. Entre 1810 e 1815 destacar-se-ia nos meios académicos o estudante de Leis António Justiniano Baptista Botelho, na qualidade de tocador de guitarra inglesa e de autor de variações para este cordofone. Natural da Beira Baixa, trabalhava como juiz de fora em Marvão quando aquele município realizou a cerimónia da quebra dos escudos reais por morte de D. João VI.
Na década de 1820 estavam em voga as modinhas “Jovem Lília Abandonada” (letra de Castilho sobre música de Rossini), “Ossos frios descarnados” e “Ó noite sempre amiga”[9]. E foi na década de 1820 que as valsas entraram em Coimbra, possivelmente nos salões, donde desceram às ruas e terreiros. Serão deste período duas composições vocais que na década de 1850 já eram dadas por antigas, a Raptada ou Caraveleiro fo Mondego e a Tricana de Aldeia.
Foram artistas activos neste período: o aplaudido executante de flauta travessa Dr. Filipe Folque, natural de Portalegre, que veio a terminar o curso de Matemática em 1826. Nascido em 28 de Novembro de 1800, Folque celebrizou-se em saraus musicais e serenatas (faleceu em 27 de Dezembro de 1874 sendo lente de Astronomia da Escola Politécnica de Lisboa), tendo pertencido à orquestra do teatro de José Trovão, à Rua do Sargento Mor[10]; o organista João José Borges, animador das récitas dramáticas e serões musicais organizados pelos irmãos Castilho, sendo responsável pela divulgação do repertório de Rossini e o autor da adaptação de “Jovem Lília Abandonada”; o Dr. Guilherme Centazzi, nascido em Faro aos 20 de Novembro de 1808, matriculado na Universidade no início do ano lectivo de 1925. Estudante de Medicina, adepto das ideias liberais, viu-se forçado a emigrar para Paris em 1828. Enquanto estudante foi músico amador e razoável executante de rabeca e violeta (faleceu em Lisboa em 28 de Junho de 1875). Em 1840 publicou o livro de memórias O Estudante de Coimbra ou relâmpago da História Portuguesa desde 1826 até 1838, onde alude à prática das modinhas.
Evocando os divertimentos quotidianos do seu tempo, Centazzi relata as idas ao manjar branco do Convento de Celas, a geropiga de Santo António dos Olivais, as incursões aos bordéis da Baixa, a produção copiosa de versos, o piscar de olhos às lavadeiras da beira-rio, a prática da rabeca, flauta e cavaquinho.[11].
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[1] Transcrição do manuscrito n.º 300 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra em Hipólito Raposo, Coimbra Doutora, Coimbra, França Amado, 1910, pág. 138.
[2] António José da Silva costuma ser biografado como advogado formado em Leis pela UC. Uma consulta rigorosa aos livros de matrícula prova que O Judeu frequentou diversas cadeiras da Faculdade de Cânones durante quatro anos, pelo que não terá chegado a completar o curso. Cf. José Oliveira Barata, António José da Silva. Criação e realidade. Volume I, Coimbra, Edição do Serviço de Documentação e Publicações da Universidade de Coimbra, 1985, págs. 150-151.
[3] Palito Métrico e correlativa Macarrónea Latino-Portuguesa, 11ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1942, págs. 185 e 189.
[4] Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, págs. 17-18.
[5] Bocage, Sonetos, 4ª edição, Mem Martins, Europa América, 1999, págs. 121-133.
[6] Informações de acordo com Ernesto Vieira, Diccionario biographico dos musicos portugueses, Volume II, Lisboa, Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900, págs. 68-72.
[7] Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, Vida e feitos de..., 3.ª edição em 4 tomos, Lisboa, Na Typographia de J. F. M. de Campos, 1824.
[8] Pinto de Carvalho, História do Fado, 2ª edição, Lisboa, Dom Quixote, 1984, pág. 260.
[9] Segundo o relato de um estudante coevo, Dr. António Moniz Corte Real. Cf. Manuel Breda Simões, Roteiro lexical do culto e festas do Espírito Santo nos Açores, Lisboa, Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, 1987, pág. 205.
[10] António José Soares, “Regentes e reportório da Tuna”, in Rua Larga, nº 16, Coimbra, 1 de Agosto de 1958, pág. 490.
[11] Guilherme Centazzi, O estudante de Coimbra ou relampago da historia portugueza desde 1826 até 1838, Lisboa, Typographia de António José da Rocha, 1840, págs. 38 e 101-102 (com um retrato do autor).

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