O meu amigo Zeca (II) por José Niza
José Niza, TestemunhosDomingo, Maio 13th, 2007
Em 1969, pouco antes de ir para a guerra, eu tinha composto a música para duas peças do CITAC, encenadas por um dos maiores nomes do teatro europeu e discípulo de Bertold Brecht: Ricard Salvat. A primeira, “A Excepção e a Regra” de Brecht. A segunda, “Castelao e a sua época”. Ambas foram proibidas e o Ricard Salvat acabou por ser preso pela PIDE e despejado em Badajoz, no dia em que começou a greve académica de 69. Para esta segunda peça compus muitas canções, entre as quais “Cantar de Emigração”, “Emigração”, “Para Rosalía”. O “Cantar de Emigração” era cantado em Coimbra por toda a malta e rapidamente se tornou um sucesso. De tal forma que hoje conheço mais de trinta versões cantadas em português, galego, castelhano, francês e alemão. Foi nessa altura que verdadeiramente comecei a compor a sério e a ser conhecido no pequeno mundo da música portuguesa. A versão do “Cantar de Emigração” que o Adriano lançou no seu LP “Cantaremos” (1970), fez o sucesso desse disco e levou o Adriano a escrever-me para a guerra e a pedir-me que fizesse todas as canções do seu álbum seguinte. Mas, mais do que isso, ele e o Zeca propuseram-me ao Sr. Arnaldo para dirigir a produção dos discos Orfeu. De certa forma foi isso que me abriu as portas para tudo o que depois vim a fazer na música portuguesa.
Entretanto o Zeca continuava, anualmente, a semear autênticas obras-primas: “Contos Velhos Rumos Novos” (1969), “Traz outro amigo também” (1970).
E estamos chegados a Agosto de 1971, altura em que regressei da guerra e comecei a trabalhar na produção dos discos Orfeu. Em cima da mesa estavam dois grandes projectos para lançar antes do Natal desse ano: o Zeca iria a França gravar um disco com direcção do José Mário Branco. E o Adriano ficaria em Lisboa (ainda estava na tropa) a gravar comigo o disco que eu tinha composto para ele. Como ambas as gravações foram feitas ao mesmo tempo eu não pude ir a França com o Zeca e fiquei em Lisboa a dirigir o disco do Adriano. Quando o Arnaldo Trindade ouviu os dois discos ficou em estado de choque musical: aquilo era muito mais do que ele sonhara!
Entretanto – e também de Paris – vieram dois discos cantados por dois exilados políticos, os seus álbuns de estreia: “Mudam-se os tempos, Mudam-se as vontades”, do José Mário Branco e “Sobreviventes”, do Sérgio Godinho.
Estes quatro discos foram quase simultaneamente postos no mercado. E aconteceu um terramoto, uma revolução musical totalmente imprevista e inovadora na música popular portuguesa. Ao fim de mais de 35 anos ainda há réplicas desse terramoto. As marcas que deixou continuam a ser a matriz e referência da música que hoje se faz em Portugal. Todos estes quatro discos figuram na lista apertada dos melhores discos da segunda metade do século XX.
O curioso disto tudo é que nenhum de nós sabia o que os outros estavam a preparar. O Zé Mário e o Sérgio estavam em Paris e eu nem sequer os conhecia. O Zeca receava a genial encenação musical do José Mário Branco e nem sequer sabia para o que estava guardado. E o Adriano só depois de comigo entrar em estúdio é que soube o que verdadeiramente lhe iria acontecer.
Nos anos seguintes produzi, ou dirigi, quatro importantes discos do Zeca: “Eu vou ser como a toupeira” (Madrid – 1972), “Venham mais cinco” (Paris – 1973), “Coro dos Tribunais” (Londres – 1974) e “Com as minhas tamanquinhas” (Lisboa – 1976), os dois primeiros antes do 25 de Abril e os dois últimos, depois. A minha eleição para a Assembleia Constituinte e, depois, para a Assembleia da República, impediram-me de continuar a trabalhar com o Zeca – e na editora. O mais importante estava feito, o fascismo tinha sido derrubado e agora a música era outra.
Produzir discos do Zeca, ainda por cima no estrangeiro, era qualquer coisa de fascinante, de ciclópico e, sobretudo, uma experiência diferente do habitual.
Tudo começava com várias idas à casa do Zeca, em Setúbal, para escolher o reportório, a direcção musical, os acompanhantes e o estúdio onde iríamos gravar. Depois havia a insuportável, mas obrigatória, missão de enviar os poemas à censura. Eu aqui inventei um truque que quase sempre funcionou e que aprendi nas artes da pesca: era o “engodo”. A verdade é que à ditadura não interessava calar totalmente o Zeca. Seria demasiado drástico e provocaria efeitos de “boomerang”. À censura interessava sim, controlar o que o Zeca cantaria. Do mal, o menos. Percebendo isto, quando preparava um disco, por exemplo de 10 canções, eu pedia ao Zeca uns 15 poemas. Os que não eram para gravar – e nem sequer tinham sido por ele musicados – eram também os mais explícitos e acirradores. Era sobretudo nesses que o lápis azul colocava a mordaça, deixando luz amarela ou verde para os outros. A estupidez dos censores era equivalente à satisfação do dever cumprido: em 15 cortavam 5 e estava o dia ganho. E eu agradecia. O engodo tinha funcionado. Mas a tarefa não terminava aqui. Era preciso marcar estúdio, combinar datas, tratar de viagens e hotéis, combinar cachets e contratar os músicos, arranjar restaurantes e pagar as contas, dar umas abébias para as rádios e para os jornais, tratar das capas dos discos e das fotografias. Quando as gravações eram lá fora eu levava o dinheiro em notas de banco e pagava “cash”.
Quando finalmente entrávamos em estúdio, no estrangeiro, era preciso explicar aos engenheiros de som que música era aquela, o que se pretendia, quem era o cantor.
As gravações do Zeca eram diferentes das habituais em que, quando se entrava em estúdio, já quase tudo estava previsto e preparado. Para ele, o estúdio era sobretudo um laboratório de experiências, uma sala de ensaios, um espaço criativo. As soluções musicais eram geralmente encontradas no momento, à custa de sucessivas tentativas. O meu drama é que tudo aquilo tinha de começar e acabar em sete dias, que era o tempo reservado para as gravações. Se houvesse um atraso teríamos de regressar a penates porque no dia seguinte o estúdio já era para outros. A verdade é que os prazos foram sempre cumpridos.
O primeiro disco que produzi para o Zeca foi “Eu vou ser como a toupeira” gravado em Madrid, em 1972. Nesse álbum ele queria incluir a canção “A morte saíu à rua” cuja letra, embora de forma não explícita, denunciava o assassinato do pintor comunista Dias Coelho pela PIDE. O poema foi cortado pela censura. O Zeca ficou indignado. E eu não me conformei. O Director Geral de Informação da altura era o Dr. Pedro Feytor Pinto, nascido e licenciado em Coimbra, que tocava umas pianadas e tinha pertencido à Tuna Académica, onde conheceu o Zeca. Era ele o chefe da censura. Telefonei-lhe e convidei-o para almoçar. Durante o almoço fino, na Varanda do Chanceler, convenci-o. “Afinal, quem é que sabia quem era o Dias Coelho?” Saí do restaurante com a autorização e uma conta choruda para o Arnaldo Trindade pagar. Não há almoços grátis.
Quando gravava, o Zeca gostava de estar sempre acompanhado pelos amigos das cantigas, mesmo que não entrassem no “filme”. Aquilo proporcionava um clima de bom convívio, com copos, conversas e muito humor. Para essa gravação eu reservei um grande apartamento nas Torres de Madrid onde todos ficávamos, e que tinha duas vantagens: uma grande sala, onde podíamos ensaiar à noite; e uma localização próxima da saída da cidade para os Estúdios Cellada, a 12 kms da capital.
A equipa que acolitava o Zeca tinha como suporte principal a viola do Carlos Alberto Moniz e integrava o galego Benedicto, grande amigo do Zeca, a Teresa Silva Carvalho e o José Jorge Letria.
O arranque da gravação foi complicado. Ninguém sabia verdadeiramente o que o Zeca queria. Nem ele era capaz de se explicar. A disciplina que o José Mário Branco tinha imposto no disco anterior (“Cantigas do Maio”), a que o Zeca se tinha submetido com alguma reserva, foi substituída por algum excesso de improvisação e de experimentalismo. Começámos por gravar as canções mais simples. Ao segundo dia, numa pausa da gravação, eu andava com o Zeca a passear no corredor. Passámos em frente da porta do estúdio 2 e ouvimos uma viola muito bem tocada. Ficámos ali, o guitarrista estava a ensaiar. O Zeca parou e disse: “É mesmo disto que estamos a precisar! Ó Niza vai lá dentro e convida o gajo para se juntar à malta!” Fui lá, expliquei-lhe ao que ia. O tipo achou o convite algo insólito mas aceitou. Este acaso do destino foi uma enorme mais-valia para o disco. O Carlos Villa, assim se chamava o guitarrista, deu um grande contributo para a sua valorização.
Uma das canções que o Zeca queria incluir – “O avô cavernoso”- era um tema dedicado ao Cardeal Cerejeira (ou ao Salazar, ou aos dois…) com uma música e um poema completamente fora do seu estilo habitual. O surrealismo do tema só podia ter um acompanhamento musical e coral igualmente insólito. Defendi que, ao contrário das regras, o papel da viola deveria ser o de destruição da música e do poema.
A ideia era um bocado abstrusa, mas o Zeca decidiu testá-la. Era o tal experimentalismo de que atrás falei, Coube-me a mim acompanhá-lo. A primeira coisa que fiz foi desafinar a viola. Isso mesmo: desafinar a viola! O Zeca começou a cantar o tema, tal como o tinha criado, e eu a desconstruí-lo com notas desafinadas e acordes dissonantes: era a loucura lúcida! O resultado foi de espanto e aprovação. Com os coros aconteceu mais ou menos o mesmo. Mas faltava ainda o tempero das percussões. E aí caímos num impasse. Parámos a gravação para reflectir. Nesse intervalo fui ao bar do estúdio e trouxe de volta uma cerveja e um “bocadillo de jambón” com aquele pão branco e estaladiço. Fui comer para o estúdio, os microfones estavam ligados e o Zeca estava a descansar na “régie”. Às tantas, ia eu a passar ao lado de um dos microfones e dei uma dentada no pão. O Zeca deu um grito de satisfação: “Eh pá, era mesmo este som que eu queria para a percussão!” O técnico pôs a correr a fita onde estava a voz do Zeca e a minha viola. E eu fiquei no estúdio a morder no “bocadillo” ao ritmo da música. Acho que devíamos ter mandado isto para o Guiness…
No ano seguinte a gravação foi em Paris, no Estúdio Aquarium. O Zeca resolveu – e bem – reconstituir a equipa de “Cantigas do Maio”, isto é, José Mário Branco e Gilles Sallé, o engenheiro de som. O Zé Mário estava à nossa espera mas, sobre o que o Zeca ia cantar, a informação que tinha era muito escassa. Foi o ano de “Venham mais cinco”. Talvez tenha sido a semana mais dura na vida musical do Zé Mário: de dia gravávamos e à noite ele ia escrever os arranjos para o dia seguinte. Quando chegou o fim da gravação nem podia com uma gata pelo rabo. Este disco contém algumas das melhores canções da obra do Zeca: “Venham mais cinco”, “Era um redondo vocábulo”, “Que amor não me engana”, “A formiga no carreiro”, “Gastão era perfeito” e algumas outras. Ficámos instalados num dos melhores hotéis de Paris, o PLM (da cadeia Paris-Lyon-Marseille, recentemente inaugurado). Tudo era climatizado, as janelas dos quartos e de todo o hotel eram estanques, tudo funcionava com ar condicionado. O ar que respirávamos era quente e absolutamente seco. O pior para a voz de qualquer cantor. O Zeca pediu-me para mudarmos de hotel, mas já estava tudo pago e o tempo ia passando. Ensinei-lhe um truque que tinha aprendido na Suécia quando o tampo da minha guitarra estalou por causa do ar seco: abrir a torneira da água quente da casa de banho e deixá-la a correr. Era a única forma de humidificar o ar. Não resolveu totalmente o problema, mas ajudou.
Quando o disco ficou pronto segui para Londres. Era lá que se iria fazer o corte do acetato e fabricar o LP. 1973 foi o ano da grande crise do petróleo. O vinil era um bem escasso e o que havia disponível já era reciclado. Quando fui à fábrica, nos arredores de Londres, fiquei decepcionado: aquilo parecia mais uma carpintaria que uma fábrica de discos. A Pye Records tinha enganado a editora. Regressei a Lisboa com os primeiros discos e telefonei ao Zeca para os ouvirmos em minha casa. Ele foi ouvindo, ouvindo, com expressão carregada e sem comentários. Mas, no fim, disse que aquilo não correspondia à qualidade do que tínhamos gravado em Paris e que não autorizava a venda. E tinha razão. A solução de recurso foi fazer a edição em Lisboa, numa fábrica onde ainda havia uma boa reserva de vinil do bom.
Mal sabíamos nós que “Venham mais cinco” seria o último disco do Zeca antes do 25 de Abril.
Em 1974, já depois da revolução dos cravos, fomos gravar a Londres, desta vez com o Fausto na direcção musical. Havia uma grande expectativa e curiosidade em saber o que o Zeca iria cantar, finalmente liberto da PIDE e da censura. Foi igual ao que sempre tinha sido. Em Portugal vivia-se o Verão quente, os cristãos-novos da canção panfletária nasciam como cogumelos, numa corrida louca para se saber quem era mais revolucionário. O Zeca não embarcou nessa onda: a grande, longa e penosa marcha já ele a tinha ganho antes.
Para essa gravação – e pela terceira vez – o Zeca voltou a convidar o Michel Delaporte, um percussionista francês que o José Mário Branco lhe apresentara em “Cantigas do Maio”. O Michel tornara-se um músico residente na sua discografia, que muito valorizou. Para além do Fausto, foram também a Londres o Carlos Alberto Moniz, o Adriano, o Vitorino e eu. A canção do disco foi “O que faz falta”.
Foi uma gravação tranquila, à inglesa, e na qual os técnicos britânicos tiveram alguma dificuldade em se integrar. Até porque, naqueles tempos conturbados, a imagem mediática que as televisões levavam ao mundo, era a de um Portugal a caminho de uma ditadura comunista. A Europa estava assustada com a ameaça de uma nova Cuba. Recordo-me de um dia, ao chegar ao estúdio, um dos engenheiros de som ingleses me perguntar, preocupado, o que se estava a passar em Lisboa. Tinha havido um atentado numa agência da AIR FRANCE, um pequeno petardo tinha quebrado o vidro da montra. Debaixo do braço eu tinha um jornal londrino. Mostrei-lhe a primeira página, ocupada com a notícia de 14 atentados do IRA, ocorridos na véspera, na Oxford Street. “So What? Pois é, mas nós já estamos habituados…” A conversa acabou logo ali.
O papel do Adriano e do Vitorino nesta gravação foi mais de animação do que de participação. Cantavam nos coros e andavam a descobrir Londres. Uma tarde irromperam pelo estúdio em grande euforia: tinham descoberto, mesmo ali ao lado, uma loja de um português que vendia chouriço alentejano, pão caseiro e vinho tinto! O Zeca, já farto das comedorias inglesas e pudins de maçã, ordenou às tropas: “Vamos ao ataque!” Os dois engenheiros de som ficaram perplexos: interromper assim uma gravação ia contra os costumes do Reino de Sua Majestade, The Queen! Foram connosco e não se arrependeram. E ficaram a perceber que na vida ou na música, beber um copo ajudava à festa: o que fazia falta era animar a malta.
Em 1975 o Zeca fez greve às gravações. Não por falta de canções, mas por falta de tempo. Cantava em tudo o que era sítio. Apoiava os trabalhadores, sobretudo no Alentejo, na reforma agrária. Ou os pescadores do Algarve. Cantava no estrangeiro. O seu lema era: “Cantando espalharei por toda a parte”. Grande parte dessas vivências e experiências foi transformada em canções no seu disco seguinte “Com as minhas tamanquinhas”, um trabalho que na minha leitura, mais parece uma foto-reportagem musical. Neste disco o Zeca canta pessoas concretas e conta estórias verídicas: Kissinger, Teresa Torga, os Índios da Meia-Praia, Como se faz um Canalha (Aventino Teixeira), Alípio de Freitas. Um verdadeiro álbum de canções em forma de fotografia. Neste trabalho o Zeca assumiu a orientação musical e nele colaboraram, entre outros, Fausto, Júlio Pereira, Michel Delaporte, Quim Barreiros (!!!), Ramon Galarza, Vitorino e eu próprio. Foi o último disco que fiz com o Zeca.
A partir daqui as suas gravações começaram a ser mais espaçadas: “Enquanto há força” (1978), “Fura-Fura” (1979), “Fados de Coimbra e outras canções” (1981), “Como se fora seu filho” (1983) e “Galinhas do Mato” (1985). Neste último disco o Zeca já estava gravemente doente. Morreria dois anos depois, vitimado por uma doença incurável, do foro neurológico, com o estranho nome de esclerose lateral amiotrófica.
Etiquetas: José Afonso
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