A
propósito de um duplo CD editado pelo “Fado ao Centro”
Jorge
Cravo[1]
Como
coleccionador, adquiri o duplo CD “fado de Coimbra: fados & guitarradas” /
vol. 2, da Associação Cultural e Artística do Centro “Fado ao Centro”, também
designada por “Centro Cultural/Casa de Fados – Fado ao Centro”.
Trata-se de um
trabalho composto por 41 temas, dos quais 21 cantados e 20 peças para Guitarra
de Coimbra. Todavia, algumas correcções terão de ser anotadas em defesa da
autenticidade da Canção de Coimbra.
No que diz
respeito a títulos e autorias dos temas, mais uma vez o público fica mal
informado. Continua a reinar uma enorme confusão neste campo, porque quem grava
não se informa, desrespeita quem criou o quê, e, muitas vezes, dá como autor
quem canta, ou cantou o tema, numa falta de rigor histórico que, infelizmente,
continua presente em muitos discos. Vejamos, pois, uma série de estropiamentos que
devem ser denunciados e corrigidos.
(1) Fado
dos Olhos Claros (faixa 1). O tema não é só de autoria de Edmundo de
Bettencourt (letra); a música é de Mário Faria Fonseca. Não se percebe por que
razão alguns temas têm os autores da letra e da música, e outros, só o autor
(es) da letra.
(2) Avé
Maria (faixa 3). O título do soneto foi já deturpado, nos anos 50, na gravação
de Luiz Goes. O original, gravado nos anos 20 por Armando Goes, tem como título
“Rezas à Noite”.
(3) Saudades
de Coimbra (faixa 5). A autoria não é de Edmundo de Bettencourt. A letra é
do poeta António de Sousa e a música de Mário Faria Fonseca.
(4) Meu
Fado (faixa 8). O título não está completo. Falta-lhe o artigo definido “O”
– O Meu Fado!
(5) Fado
da Mentira (faixa 10). O autor não é António Menano. A música é de
Alexandre Resende; a 1ª quadra é de autor desconhecido e a 2ª quadra é popular.
(6) Fado
das Andorinhas (faixa 11). A autoria não é só de Paradela de Oliveira.
Paradela fez a música e é co-autor da letra, ao lado de João Carlos Celestino
Pereira Gomes.
(7) Trova
do Vento que Passa (faixa 13). A música não é só de António de Portugal,
mas também de Adriano Correia de Oliveira.
(8) Os
Sinos (faixa 14). O título não está correcto. “Quando os Sinos Dobram” é o
verdadeiro título.
(9) Inquietação
(faixa 15). Face às quadras gravadas e, em abono da verdade, esta “Inquietação”
não é a de Edmundo de Bettencourt. Vejamos: em 1927, Paradela de Oliveira
gravou um tema intitulado “Um Fado de Coimbra”, com quadras de autor
desconhecido: a 1ª quadra, “És linda mas… foras feia”, e a 2ª, “És loura,
branca e tão linda”. Em 1928, Bettencourt gravou um tema, a que deu o título de
“Inquietação”, com quadras da sua autoria: 1ª quadra (“Quanto mais foges de mim”)
e a 2ª quadra (“Todo o bem que não se alcança”). Ambos os temas têm a música de
Alexandre Resende. Aqui, neste disco, cometeu-se o mesmo erro que José Afonso,
em 1980, e gravaram-se, como se fosse a “Inquietação” de Edmundo de
Bettencourt, a 1ª quadra de Paradela (de autor desconhecido, com a alteração de
“mas” para “se”) e a 2ª quadra de Bettencourt (“Todo o bem que não se alcança”).
Assim, e não sendo Bettencourt, o autor de toda a letra deste “Inquietação”,
deveriam ter sido mais explícitas as autorias: 1ª quadra (autor desconhecido), 2ª
quadra (Edmundo de Bettencourt), e não, “entregar” a autoria da letra
exclusivamente a Bettencourt.
(10) Fado dos Beijos (faixa 16). O autor não é Luiz Goes. Este Fado é um
Fado de Lisboa – o “Fado Tango” de Joaquim Campos – que teve arranjos do
próprio Goes ao transpô-lo para o Cancioneiro de Coimbra, mas em que o seu ADN
lisboeta continua perceptível.
(11) Coimbra Menina e Moça (faixa 17). A música, de Fausto Frazão, é do
“Fado da Récita de Despedida do V ano médico de 1919-1920” , com quatro quadras de
Américo Cortez Pinto, ambos quintanistas desse curso. Só a 1ª quadra foi gravada
por Edmundo de Bettencourt. A 2ª quadra é popular. Pergunto: como é que o
Edmundo de Bettencourt pode ser autor também da música, se ele só chegou a
Coimbra em 1922 e a música é de 1920?
(12) Balada da Despedida do 5º ano de Medicina de 1948 (faixa 19). O
título não está correcto. É sabido que, na gíria académica de Coimbra, as
baladas de despedida de Medicina e de Direito são referidas como baladas do “5º
ano médico” e do “5º ano jurídico”, como há tantos exemplos, e não, como
baladas de despedida de Medicina ou de Direito. Quanto mais, e seguindo alguns
exemplos de décadas recuadas, poderemos também designá-las por “Baladas da
Despedida dos Quintanistas de Medicina” ou “dos Quintanistas de Direito”. Há um
vocabulário e alguma terminologia próprios da comunidade académica que não vem
mal nenhum ao mundo se se mantiverem! Neste caso, e segundo a partitura,
editada em 1949, temos como título: “Balada da Despedida do 5º ano médico de
1948/1949”. Estreou-se em 6 de Abril de 1949, no Teatro Avenida, por ocasião da
Récita dos Quintanistas de Medicina.
(13) Balada de Despedida do 5º ano Jurídico. O título vem mutilado da
indicação de qual 5º ano Jurídico é esta Balada. Ninguém é obrigado a saber o
ano. Logo: “Balada da Despedida do 5º ano jurídico de 1988/89” seria o mais
correcto.
Conclusão: em 21
temas cantados, 13, ou seja, mais de metade, têm erros de títulos e autorias que
poderiam ter sido facilmente evitados, se os responsáveis pelo projecto tivessem
pesquisado e lido alguma coisa sobre Canção de Coimbra. Não são só turistas a
adquirir os discos e um pouco mais de seriedade e de responsabilidade nas
edições discográficas seriam muito bem vindas!
Relativamente ao
disco das variações/guitarradas (CD 2):
(1)
Canção de Alcipe (faixa 10). Não é de Carlos Paredes. É música de Afonso
Correia Leite para o filme de Leitão de Barros, “Bocage” (1936). Foi Artur
Paredes que a harmonizou para Guitarra de Coimbra mas nunca a gravou. A
primeira gravação foi de António Portugal, sob o título “Pavana”, em 1966.
Carlos Paredes gravou-a em 1971.
(2) Cantiga
para Quem Sonha (faixa 15). Toda a gente que gravita na “galáxia sonora
coimbrã” sabe que esta Canção não é de Luiz Goes. Os seus autores são Leonel
Neves (letra) e João Gomes (música). Tratando-se de uma interpretação à
Guitarra da música desta cantiga, o mínimo exigível é que aparecesse o nome do seu
autor.
(3) Canção
do Ribeirinho (faixa 19). Esta peça instrumental não é da autoria de Flávio
Rodrigues. Trata-se de uma música para uma revista de Lisboa que Artur Paredes
harmonizou para Guitarra de Coimbra e gravou em 1957. Não consta que Flávio
Rodrigues a tenha gravado ou que fizesse parte do seu repertório.
Alguns
reparos também terão de ser feitos, no que diz respeito às músicas e letras
cantadas, pois estropiam-se textos e melodias em demasia para que se possa levar
a sério um trabalho desta envergadura. Eis algumas das adulterações que mais se
evidenciam.
(1) Fado
dos Olhos Claros. O início do 1º verso da 2ª quadra está errado: não é “Um
olhar de claridade”, mas sim, “Ao olhar da claridade”; assim como o 2º
verso da mesma quadra está errado: não é “olhar de luar e de água”, mas
sim, “olhar de luar e água”. A única alteração possível na letra, diz respeito
a este mesmo 2º verso, pois Bettencourt gravou e editou uma outra versão do
tema, em que cantou “olhar de luar na água”.
(2) Balada
do Mar (faixa 2). Adulterado o 3º e 4º versos da 2ª quadra. Não é, “Verás
velas acenando / Lá longe, o meu queixume”, mas sim, “Verás velas
a acenar / Ao longe, o meu queixume”.
(3) Rezas
à Noite. No 3º verso da 1ª quadra a palavra a cantar é “costumada” e não
“acostumada”; está errado o 2º verso da 2ª quadra: não é “que já seus pais,
outrora, haviam tido”, mas sim, “tinham tido”; o 2º e 3º versos do 1º
terceto estão errados, não é “balbuciando baixinho e descuidosa / Essa
prece (…)”, mas sim, “balbuciava baixinho e descuidosa / Esta prece (…)”; e no
3º verso do 2º terceto, não é “Rogai por o nosso amor”, mas “Rogai p’lo nosso
amor”, para além da música em “para sempre” estar adulterada!
(4) Saudades
de Coimbra. No 2º verso da 1ª quadra não é “que eu lá tive”, mas
sim, “que lá tive”; a música da parte final do 4º verso (“não vive”) não está
correcta; na 2ª quadra, na repetição do 3º verso, não há nenhum “E a
sombra”, mas apenas “A sombra”; e a música volta a não estar correcta em
“flores”.
(5) O
Meu Fado. A música surge adulterada em “mais” (repetição), “letras”
(repetição), “amor”, “que a morte” e “uma”.
(6) Fado
das Andorinhas. A música está adulterada no 4º verso de cada quadra.
(7) Feiticeira
(faixa 12). Melodia adulterada em “a vida inteira”. No 2º verso da 2ª
estrofe, não é “sonho lindo esse que eu tive”, mas sim, “sonho lindo
este que eu tive”. A repetição do último verso desta estrofe não é, “eu vivi
p’ra te beijar”, mas “e eu vivi…”.
(8) Trova
do vento que passa. No 4º verso da primeira quadra, não é, “E o
vento nada me diz”, mas sim, “O vento nada me diz”. No 2º verso da 3ª quadra,
não é “Em tempos de servidão”, mas sim, “Em tempo de servidão”.
(9) Quando
os sinos dobram. A música do 4º verso de ambas as quadras está adulterada
nas palavras “perdeu” e “quem”.
(10) Fado dos Beijos. A melodia está adulterada na repetição do “se” (1º
verso da 1ª quadra) e na repetição da sílaba “pre” de “preferia” (1º verso, 2ª
quadra). No último verso da 2º estrofe, há uma “rasteira” de Luiz Goes que só
ouvidos muito atentos, ou com o recurso a auscultadores, é que é possível
detectar. Da primeira vez canta “Mas sem beijar-te isso não” e, na
repetição, canta “Mas sem beijar isso não”.
Igualmente fiquei
deveras surpreendido com a falta de rigor interpretativo e o fraco desempenho
de alguns cultores que, no folheto que acompanha a caixa, se afirmam
possuidores de “um vasto curriculum neste estilo musical (…)”. Quando se dizem
ter “como missão principal promover e divulgar o Fado e a Guitarra (Coimbra/Lisboa
[?]) com base em padrões de alta qualidade [?]”, fico deveras apreensivo e
pergunto-me se tudo isto não passará de uma grande trapalhada para turista, já
que o texto de apresentação também nos surge em inglês!
Tendo em conta
diversos temas cantados, alguns aspectos vocais e interpretativos merecem-me
também alguns reparos gerais.
(1)
Exageros
vocais sem qualquer interesse nem acrescento à interpretação. Bem pelo
contrário, os temas ficam arrastados, sem expressão, sem acutilância, e só se
poderá compreender tal abuso para satisfação do próprio ego de quem canta e para um exibicionismo doentio do próprio órgão
vocal.
(2)
Canto
demasiado afectado, fruto de uma colocação de voz bastante influenciada/viciada
pelo canto lírico. Acontece que a Canção de Coimbra não é Ópera. Embora tenha
influências da música erudita, desde as modinhas ao “lied”, estas
reminiscências diluem-se, quando em contacto com a maneira de cantar mais
popular, acabando por vir ao de cima o cunho regional e local da tradição
musical coimbrã, de tal maneira que este estilo vocal erudito – voz
semi-operática – acaba despercebido embora lá esteja. Não sejamos tão elitistas
ao ponto de fazer perder as fortes ligações da Canção de Coimbra à maneira de
cantar, à dicção e “ao dizer os versos” do filão popular da cidade.
(3)
Quem
ouve alguns temas deste disco, fica com a ideia que, com uma voz a média
intensidade e um recurso pontual, mas bastante frequente, à surdina e ao
falsete, qualquer um canta todo o repertório de Coimbra, basta escolher uma
tonalidade, não digo confortável, mas “preguiçosa” e, sem esforço, tudo se
canta.
(4)
Há
temas em que se assiste a uma certa fadistagem na interpretação, sem desprimor
para o Fado de Lisboa.
Conclusão
De um total de
21 temas cantados, surgirem 15 temas, com estropiamentos de títulos e autorias,
adulterações de letras e músicas, leva a que seja um bocado atrevido falar-se
“de alta qualidade” num trabalho que apresenta tanto tema impróprio para
consumo. É que, com tantos erros, estamos perante um duplo disco que não tem interesse
para quem se queira dedicar à Canção de Coimbra com honestidade artística,
apenas servindo os intuitos comerciais e turísticos do projecto “Fado ao
Centro”.
Escreveram na
capa do duplo CD que estamos na presença de “uma das obras mais completas do
Fado de Coimbra”, naturalmente tendo em conta, também, o volume 1. Pois bem,
embora com os seus defeitos, eu continuo a preferir a antologia “Tempo (s) de
Coimbra” de António Portugal e António Pinho Brojo (47 peças vocais e 23 instrumentais).
Como responsáveis
do projecto do “Fado ao Centro” e, particularmente, deste Duplo CD, esperava
muito mais do Luís Carlos Santos (v.), que conheço bem, do Luís Barroso (g.),
que de promessa nos anos 90 espero que não passe a desilusão, e do João Farinha
(c.), que, embora estejamos em desacordo em muitos aspectos desta Canção (para
mim), Fado (para ele), tem antecedentes familiares nesta música para saber mais
sobre a matriz vocal coimbrã e como melhor respeitá-la.
Espero
que o vosso profissionalismo dê para crescerem em qualidade e não o contrário!
E já agora, e
para terminar, em tom de brincadeira, um conselho/alerta: guitarristas e
violas, cuidai-vos!!! Por aquilo que se ouve no início da 6ª faixa, não tardará
muito a chegar o dia em que estarão “desempregados”. Será a “paga” por alguns
de vós dizerem que os cantores são um mal necessário?
2 Comentários:
Quanta sensaboria de crítica tão sem sal, que pouco ou nada acrescenta aos ditos "estropiamentos", por ser tão apraz.
E o "conselho" final, é um "Bravo!! digno de prego na amálgama de qualquer coisa que não se sabe bem o que é aqui.
Se calhar o (grande) mal desta obra foi falhar em determinados convites.
Haja mais olhares assim sérios ( e descomprometidos verdadeiramente ) sobre o que se vai fazendo nestes caminhos tão centrais para o percurso que a cultura coimbrã vai seguindo!...
Doa a quem doer.
Bravo.
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