segunda-feira, 18 de junho de 2012

A propósito de um duplo CD editado pelo “Fado ao Centro”


                                                                           Jorge Cravo[1]


Como coleccionador, adquiri o duplo CD “fado de Coimbra: fados & guitarradas” / vol. 2, da Associação Cultural e Artística do Centro “Fado ao Centro”, também designada por “Centro Cultural/Casa de Fados – Fado ao Centro”.

Trata-se de um trabalho composto por 41 temas, dos quais 21 cantados e 20 peças para Guitarra de Coimbra. Todavia, algumas correcções terão de ser anotadas em defesa da autenticidade da Canção de Coimbra.

No que diz respeito a títulos e autorias dos temas, mais uma vez o público fica mal informado. Continua a reinar uma enorme confusão neste campo, porque quem grava não se informa, desrespeita quem criou o quê, e, muitas vezes, dá como autor quem canta, ou cantou o tema, numa falta de rigor histórico que, infelizmente, continua presente em muitos discos. Vejamos, pois, uma série de estropiamentos que devem ser denunciados e corrigidos.

 (1) Fado dos Olhos Claros (faixa 1). O tema não é só de autoria de Edmundo de Bettencourt (letra); a música é de Mário Faria Fonseca. Não se percebe por que razão alguns temas têm os autores da letra e da música, e outros, só o autor (es) da letra.

(2) Avé Maria (faixa 3). O título do soneto foi já deturpado, nos anos 50, na gravação de Luiz Goes. O original, gravado nos anos 20 por Armando Goes, tem como título “Rezas à Noite”.

(3) Saudades de Coimbra (faixa 5). A autoria não é de Edmundo de Bettencourt. A letra é do poeta António de Sousa e a música de Mário Faria Fonseca.

(4) Meu Fado (faixa 8). O título não está completo. Falta-lhe o artigo definido “O” – O Meu Fado!

(5) Fado da Mentira (faixa 10). O autor não é António Menano. A música é de Alexandre Resende; a 1ª quadra é de autor desconhecido e a 2ª quadra é popular.

(6) Fado das Andorinhas (faixa 11). A autoria não é só de Paradela de Oliveira. Paradela fez a música e é co-autor da letra, ao lado de João Carlos Celestino Pereira Gomes.

(7) Trova do Vento que Passa (faixa 13). A música não é só de António de Portugal, mas também de Adriano Correia de Oliveira.

(8) Os Sinos (faixa 14). O título não está correcto. “Quando os Sinos Dobram” é o verdadeiro título.

(9) Inquietação (faixa 15). Face às quadras gravadas e, em abono da verdade, esta “Inquietação” não é a de Edmundo de Bettencourt. Vejamos: em 1927, Paradela de Oliveira gravou um tema intitulado “Um Fado de Coimbra”, com quadras de autor desconhecido: a 1ª quadra, “És linda mas… foras feia”, e a 2ª, “És loura, branca e tão linda”. Em 1928, Bettencourt gravou um tema, a que deu o título de “Inquietação”, com quadras da sua autoria: 1ª quadra (“Quanto mais foges de mim”) e a 2ª quadra (“Todo o bem que não se alcança”). Ambos os temas têm a música de Alexandre Resende. Aqui, neste disco, cometeu-se o mesmo erro que José Afonso, em 1980, e gravaram-se, como se fosse a “Inquietação” de Edmundo de Bettencourt, a 1ª quadra de Paradela (de autor desconhecido, com a alteração de “mas” para “se”) e a 2ª quadra de Bettencourt (“Todo o bem que não se alcança”). Assim, e não sendo Bettencourt, o autor de toda a letra deste “Inquietação”, deveriam ter sido mais explícitas as autorias: 1ª quadra (autor desconhecido), 2ª quadra (Edmundo de Bettencourt), e não, “entregar” a autoria da letra exclusivamente a Bettencourt.

(10) Fado dos Beijos (faixa 16). O autor não é Luiz Goes. Este Fado é um Fado de Lisboa – o “Fado Tango” de Joaquim Campos – que teve arranjos do próprio Goes ao transpô-lo para o Cancioneiro de Coimbra, mas em que o seu ADN lisboeta continua perceptível.

(11) Coimbra Menina e Moça (faixa 17). A música, de Fausto Frazão, é do “Fado da Récita de Despedida do V ano médico de 1919-1920”, com quatro quadras de Américo Cortez Pinto, ambos quintanistas desse curso. Só a 1ª quadra foi gravada por Edmundo de Bettencourt. A 2ª quadra é popular. Pergunto: como é que o Edmundo de Bettencourt pode ser autor também da música, se ele só chegou a Coimbra em 1922 e a música é de 1920?

(12) Balada da Despedida do 5º ano de Medicina de 1948 (faixa 19). O título não está correcto. É sabido que, na gíria académica de Coimbra, as baladas de despedida de Medicina e de Direito são referidas como baladas do “5º ano médico” e do “5º ano jurídico”, como há tantos exemplos, e não, como baladas de despedida de Medicina ou de Direito. Quanto mais, e seguindo alguns exemplos de décadas recuadas, poderemos também designá-las por “Baladas da Despedida dos Quintanistas de Medicina” ou “dos Quintanistas de Direito”. Há um vocabulário e alguma terminologia próprios da comunidade académica que não vem mal nenhum ao mundo se se mantiverem! Neste caso, e segundo a partitura, editada em 1949, temos como título: “Balada da Despedida do 5º ano médico de 1948/1949”. Estreou-se em 6 de Abril de 1949, no Teatro Avenida, por ocasião da Récita dos Quintanistas de Medicina.

(13) Balada de Despedida do 5º ano Jurídico. O título vem mutilado da indicação de qual 5º ano Jurídico é esta Balada. Ninguém é obrigado a saber o ano. Logo: “Balada da Despedida do 5º ano jurídico de 1988/89” seria o mais correcto.

Conclusão: em 21 temas cantados, 13, ou seja, mais de metade, têm erros de títulos e autorias que poderiam ter sido facilmente evitados, se os responsáveis pelo projecto tivessem pesquisado e lido alguma coisa sobre Canção de Coimbra. Não são só turistas a adquirir os discos e um pouco mais de seriedade e de responsabilidade nas edições discográficas seriam muito bem vindas!

Relativamente ao disco das variações/guitarradas (CD 2):

(1) Canção de Alcipe (faixa 10). Não é de Carlos Paredes. É música de Afonso Correia Leite para o filme de Leitão de Barros, “Bocage” (1936). Foi Artur Paredes que a harmonizou para Guitarra de Coimbra mas nunca a gravou. A primeira gravação foi de António Portugal, sob o título “Pavana”, em 1966. Carlos Paredes gravou-a em 1971.

(2) Cantiga para Quem Sonha (faixa 15). Toda a gente que gravita na “galáxia sonora coimbrã” sabe que esta Canção não é de Luiz Goes. Os seus autores são Leonel Neves (letra) e João Gomes (música). Tratando-se de uma interpretação à Guitarra da música desta cantiga, o mínimo exigível é que aparecesse o nome do seu autor.

(3) Canção do Ribeirinho (faixa 19). Esta peça instrumental não é da autoria de Flávio Rodrigues. Trata-se de uma música para uma revista de Lisboa que Artur Paredes harmonizou para Guitarra de Coimbra e gravou em 1957. Não consta que Flávio Rodrigues a tenha gravado ou que fizesse parte do seu repertório.

         Alguns reparos também terão de ser feitos, no que diz respeito às músicas e letras cantadas, pois estropiam-se textos e melodias em demasia para que se possa levar a sério um trabalho desta envergadura. Eis algumas das adulterações que mais se evidenciam.

(1) Fado dos Olhos Claros. O início do 1º verso da 2ª quadra está errado: não é “Um olhar de claridade”, mas sim, “Ao olhar da claridade”; assim como o 2º verso da mesma quadra está errado: não é “olhar de luar e de água”, mas sim, “olhar de luar e água”. A única alteração possível na letra, diz respeito a este mesmo 2º verso, pois Bettencourt gravou e editou uma outra versão do tema, em que cantou “olhar de luar na água”.

(2) Balada do Mar (faixa 2). Adulterado o 3º e 4º versos da 2ª quadra. Não é, “Verás velas acenando / longe, o meu queixume”, mas sim, “Verás velas a acenar / Ao longe, o meu queixume”.

(3) Rezas à Noite. No 3º verso da 1ª quadra a palavra a cantar é “costumada” e não “acostumada”; está errado o 2º verso da 2ª quadra: não é “que já seus pais, outrora, haviam tido”, mas sim, “tinham tido”; o 2º e 3º versos do 1º terceto estão errados, não é “balbuciando baixinho e descuidosa / Essa prece (…)”, mas sim, “balbuciava baixinho e descuidosa / Esta prece (…)”; e no 3º verso do 2º terceto, não é “Rogai por o nosso amor”, mas “Rogai p’lo nosso amor”, para além da música em “para sempre” estar adulterada!

(4) Saudades de Coimbra. No 2º verso da 1ª quadra não é “que eu lá tive”, mas sim, “que lá tive”; a música da parte final do 4º verso (“não vive”) não está correcta; na 2ª quadra, na repetição do 3º verso, não há nenhum “E a sombra”, mas apenas “A sombra”; e a música volta a não estar correcta em “flores”.

(5) O Meu Fado. A música surge adulterada em “mais” (repetição), “letras” (repetição), “amor”, “que a morte” e “uma”.

(6) Fado das Andorinhas. A música está adulterada no 4º verso de cada quadra.

(7) Feiticeira (faixa 12). Melodia adulterada em “a vida inteira”. No 2º verso da 2ª estrofe, não é “sonho lindo esse que eu tive”, mas sim, “sonho lindo este que eu tive”. A repetição do último verso desta estrofe não é, “eu vivi p’ra te beijar”, mas “e eu vivi…”.

(8) Trova do vento que passa. No 4º verso da primeira quadra, não é, “E o vento nada me diz”, mas sim, “O vento nada me diz”. No 2º verso da 3ª quadra, não é “Em tempos de servidão”, mas sim, “Em tempo de servidão”.

(9) Quando os sinos dobram. A música do 4º verso de ambas as quadras está adulterada nas palavras “perdeu” e “quem”.

(10) Fado dos Beijos. A melodia está adulterada na repetição do “se” (1º verso da 1ª quadra) e na repetição da sílaba “pre” de “preferia” (1º verso, 2ª quadra). No último verso da 2º estrofe, há uma “rasteira” de Luiz Goes que só ouvidos muito atentos, ou com o recurso a auscultadores, é que é possível detectar. Da primeira vez canta “Mas sem beijar-te isso não” e, na repetição, canta “Mas sem beijar isso não”.

Igualmente fiquei deveras surpreendido com a falta de rigor interpretativo e o fraco desempenho de alguns cultores que, no folheto que acompanha a caixa, se afirmam possuidores de “um vasto curriculum neste estilo musical (…)”. Quando se dizem ter “como missão principal promover e divulgar o Fado e a Guitarra (Coimbra/Lisboa [?]) com base em padrões de alta qualidade [?]”, fico deveras apreensivo e pergunto-me se tudo isto não passará de uma grande trapalhada para turista, já que o texto de apresentação também nos surge em inglês!

Tendo em conta diversos temas cantados, alguns aspectos vocais e interpretativos merecem-me também alguns reparos gerais.

(1)         Exageros vocais sem qualquer interesse nem acrescento à interpretação. Bem pelo contrário, os temas ficam arrastados, sem expressão, sem acutilância, e só se poderá compreender tal abuso para satisfação do próprio ego de quem canta e para um exibicionismo doentio do próprio órgão vocal.

(2)         Canto demasiado afectado, fruto de uma colocação de voz bastante influenciada/viciada pelo canto lírico. Acontece que a Canção de Coimbra não é Ópera. Embora tenha influências da música erudita, desde as modinhas ao “lied”, estas reminiscências diluem-se, quando em contacto com a maneira de cantar mais popular, acabando por vir ao de cima o cunho regional e local da tradição musical coimbrã, de tal maneira que este estilo vocal erudito – voz semi-operática – acaba despercebido embora lá esteja. Não sejamos tão elitistas ao ponto de fazer perder as fortes ligações da Canção de Coimbra à maneira de cantar, à dicção e “ao dizer os versos” do filão popular da cidade.

(3)         Quem ouve alguns temas deste disco, fica com a ideia que, com uma voz a média intensidade e um recurso pontual, mas bastante frequente, à surdina e ao falsete, qualquer um canta todo o repertório de Coimbra, basta escolher uma tonalidade, não digo confortável, mas “preguiçosa” e, sem esforço, tudo se canta.

(4)         Há temas em que se assiste a uma certa fadistagem na interpretação, sem desprimor para o Fado de Lisboa.
                                                                                                                    
Conclusão

De um total de 21 temas cantados, surgirem 15 temas, com estropiamentos de títulos e autorias, adulterações de letras e músicas, leva a que seja um bocado atrevido falar-se “de alta qualidade” num trabalho que apresenta tanto tema impróprio para consumo. É que, com tantos erros, estamos perante um duplo disco que não tem interesse para quem se queira dedicar à Canção de Coimbra com honestidade artística, apenas servindo os intuitos comerciais e turísticos do projecto “Fado ao Centro”.

Escreveram na capa do duplo CD que estamos na presença de “uma das obras mais completas do Fado de Coimbra”, naturalmente tendo em conta, também, o volume 1. Pois bem, embora com os seus defeitos, eu continuo a preferir a antologia “Tempo (s) de Coimbra” de António Portugal e António Pinho Brojo (47 peças vocais e 23 instrumentais).

Como responsáveis do projecto do “Fado ao Centro” e, particularmente, deste Duplo CD, esperava muito mais do Luís Carlos Santos (v.), que conheço bem, do Luís Barroso (g.), que de promessa nos anos 90 espero que não passe a desilusão, e do João Farinha (c.), que, embora estejamos em desacordo em muitos aspectos desta Canção (para mim), Fado (para ele), tem antecedentes familiares nesta música para saber mais sobre a matriz vocal coimbrã e como melhor respeitá-la.

         Espero que o vosso profissionalismo dê para crescerem em qualidade e não o contrário!

E já agora, e para terminar, em tom de brincadeira, um conselho/alerta: guitarristas e violas, cuidai-vos!!! Por aquilo que se ouve no início da 6ª faixa, não tardará muito a chegar o dia em que estarão “desempregados”. Será a “paga” por alguns de vós dizerem que os cantores são um mal necessário?



[1] Cultor da Canção de Coimbra

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Quanta sensaboria de crítica tão sem sal, que pouco ou nada acrescenta aos ditos "estropiamentos", por ser tão apraz.

E o "conselho" final, é um "Bravo!! digno de prego na amálgama de qualquer coisa que não se sabe bem o que é aqui.

Se calhar o (grande) mal desta obra foi falhar em determinados convites.

18 de junho de 2012 às 11:58  
Anonymous Passaroco do Mondego disse...

Haja mais olhares assim sérios ( e descomprometidos verdadeiramente ) sobre o que se vai fazendo nestes caminhos tão centrais para o percurso que a cultura coimbrã vai seguindo!...
Doa a quem doer.
Bravo.

23 de junho de 2012 às 00:40  

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