ARQUIVOS
SONOROS, REALIDADE PROTO-EMERGENTE EM PORTUGAL?
A
indústria fonográfica afirmou-se no mundo ocidental na década de 1890.
Excluindo o Phonogrammarchiv de Viena (1899)
e o Berliner Phonogramm-Archiv (1900),
os registos de sons não foram considerados documentos de arquivo dotados de
autenticidade para fazerem fé sobre os movimentos artísticos ou produzirem
memória do estado de cultura dos diferentes povos, comunidades e protagonistas.
Produzidos,
comercializados e guardados numa lógica de consumo e de entretenimento inerente
à gestão mercantil e à cultura de massas, os fonogramas editados desde a década
de 1890 não chegaram a merecer as atenções dos serviços públicos que tutelavam
as bibliotecas e os arquivos portugueses.
A erosão
das sociedades tradicionais e a institucionalização de cursos superiores de
música vieram chamar a atenção dos investigadores para a necessidade de se
colmatar o vazio existente. Este artigo discute as fronteiras do que possa ser
um arquivo sonoro se posicionado na plataforma dos saberes já
institucionalizados e conclui pela necessidade de um claro afastamento em
relação às práticas instrumentalizadas nas bibliotecas e nas fonotecas.
Palavras-chave: fonograma, registo
fonográfico, arquivo sonoro, fonoteca, discografia, catalogação, inventário
Phonographic industry stood up in western world in the
1890’s. Apart from Phonogrammarchiv de Viena (1899) and Berliner
Phonogramm-Archiv (1900), sound recordings were not considered as archive
documents with authenticity to give testimony on the artistic movements or to
produce memories on the cultural status of different peoples, communities and
protagonists.
Produced, sold and kept in consummation and
entertainment logics inherent to the mercantile management and mass culture,
the phonograms edited since the 1890’s did not deserve the attention of the
public services that oversaw Portuguese libraries and archives. The erosion of
traditional societies and the creation of university degrees in music came to catch
the attention of investigators to the needs of fulfilling that void.
This article proposes the discussion of what the
frontiers of a sound archive might be, when placed in the platform of the
institutionalized knowledge and concludes for the need of a clear withdrawal
from the currently adopted practices in the libraries and sound libraries.
Keywords: phonogram, sound recordings, sound archive, sound library, discography,
cataloguing, inventory
L’industrie phonographique s’est affirmée dans le monde
occidental pendant la décennie de 1890. Mis à part le Phonogrammarchiv de
Vienne (1899) et le Berliner Phonogramm-Archiv (1900), les enregistrements de
sons n’ont pas été considérés des documents d’archive dotés d’authenticité pour
porter témoignage sur les mouvements artistiques ou pour faire acte de mémoire
de l’état de culture des différents peuples, communautés et protagonistes.
Produits, commercialisés et stockés dans une logique de
consommation et de divertissement, inhérente à la gestion marchande et à la
culture de masses, les phonogrammes édités depuis la décennie de 1890 n’ont pas
réussi à mériter l’attention des pouvoirs publics qui avaient en tutelle les
bibliothèques et les archives portugaises.
L´érosion des sociétés traditionnelles et
l’institutionnalisation de cours supérieurs de musique sont venues attirer
l’attention des chercheurs sur les besoins de combler le vide existant. Cet
article discute les frontières de ce que peut être un archive sonore si
positionné sur la plateforme des savoirs déjà institutionnalisés et conclut à
la nécessité d’un net éloignement vis-à-vis des pratiques instrumentalisées
dans les bibliothèques et phonothèques.
Mots-clés: phonogramme,
enregistrement phonographique, archive sonore, phonothèque, discographie,
catalogage, inventaire
1.
Moldura legislativa
Em França, a Lei de 19 de Maio de 1925 obrigava
os editores a depositar livros, fotografias e fonogramas, espécimes alargados
às películas cinematográficas pela Lei de 21 de Junho de 1943. A partir de 1938 os
registos sonoros franceses passaram a ser depositados na Phonothèque Nationale,
actualmente um dos departamentos especializados da Bibliothèque Nationale. Em
1992 o depósito legal francês foi alargado às emissões de rádio e de televisão.
Na Colombia, a Ley 44, de 1993, o Decreto 460
del 16 de marzo de 1995, o Decreto 2.150, de 1995, e o Decreto 358, de 2000,
obrigam a depositar na Biblioteca Nacional um exemplar de fonogramas editados
ou importados e de matrizes audiovisuais. Em caso de incumprimento, os editores
nacionais e os importadores ficam obrigados a pagar uma multa que pode ir até
10 vezes o preço de capa do entregável. O acto de entrega deve ser acompanhado
por um auto contendo dados completos sobre o remetente, título dos entregáveis
e quantidades importadas ou fabricadas de cada título.
No Brasil, o governo de Lula da Silva sancionou
a Lei n.º 12.192/2010, de 14 de Janeiro, segundo a qual todas as editoras de
fonogramas e vídeos são obrigadas a enviar à Biblioteca Nacional dois
exemplares das obras editadas e comercializadas até 30 dias após a data de
publicação. Os incumpridores podem incorrer em multas até 10 vezes o preço de
capa da obra editada. O serviço responsável pela recepção e controlo dos
entregáveis é a Divisão de Depósito Legal da Fundação Biblioteca Nacional, com
sede na Avenida Rio Branco, n.º 2919, 2.º Andar, Rio de Janeiro.
No caso específico de Portugal, o Ministério da
Instrução Pública desenhou o regime do depósito legal através do Decreto n.º
5.618, de 10 de Maio de 1919, que continha o Regulamento Orgânico da Biblioteca Nacional de Lisboa. O artigo
89.º e seguintes elencava para depósito público obras impressas, opúsculos,
folhetos, periódicos, desenhos, folhas volantes, revistas, obras de música,
estampas, mapas, plantas e bilhetes-postais, não referindo em parte alguma
fonogramas. Eram pólos de depósito a Biblioteca Nacional (Lisboa), a Biblioteca
da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Municipal do Porto e a Biblioteca Popular
de Lisboa. O incumprimento legitimava a aplicação de uma multa de 10$00.
O Decreto-Lei n.º 74/82, de 3 de Março, que
actualiza o Decreto n.º 19.952, de 27 de Junho de 1931, dispõe no Capítulo III,
artigo 4.º, alínea 2) que o depósito de fonogramas, de videogramas e de
películas cinematográficas é obrigatório na Biblioteca Nacional sedeada em
Lisboa. Enquanto os produtores e importadores estão obrigados a depositar 14
exemplares de cada uma das espécies referidas, apenas se lhes exige um exemplar
para os fonogramas.
O conteúdo dos artigos 7.º e 10.º carece de ser
repensado, na medida em que sanciona a continuação de uma visão limitada e
arcaica do que sejam arquivos sonoros. Com efeito, a ausência de um arquivo
sonoro nacional não legitima que a Biblioteca Nacional tenha de assumir uma
função arquivístico-custodial que não é a sua, função essa que os produtores e
editores de fonogramas não costumam respeitar.
Hodiernamente, os investigadores, os cidadãos e
os movimentos cívicos de defesa da cultura oral não estão interessados na
manutenção de um [virtual] arquivo sonoro central diluído numa biblioteca, que
nunca chegou verdadeiramente a ser constituído como tal. Melhor seria que cada
município criasse o seu arquivo sonoro com originais e remasterizações de
fonogramas impressos em diversos suportes, arquivos de rádios e televisões,
campanhas de recolhas de música tradicional levadas a cabo junto das
comunidades locais, campanhas de recolha de literatura oral, campanhas de
recolha de histórias de vidas e fontes adquiridas por compra, oferta, doação e
intercâmbio.
A legislação portuguesa é completada pelas
disposições relativas ao regime geral da protecção do património. Assim, a Lei
n.º 13/85, de 6 de Julho, no seu Subtítulo II – Dos bens imateriais, artigo
43.º, alínea e) do n.º 1, referia a necessidade de implementação de políticas
de recolha, conservação e fruição do património fotográfico, fílmico e
fonográfico.
O que se dizia sobre fontes sonoras era meramente residual quando comparado com
os patrimónios de ostentação pública associados aos monumentos arquitectónicos
e aos sítios arqueológicos. Confundia-se património efectivamente constituído
no decurso de projectos de avaliação, estudo, inventariação e salvaguarda com
patrimónios constituendos, o que nos leva a concluir que o legislador não
saberia propriamente do que estava a falar em termos fono-arquivísticos.
Esta impressão consolida-se com a leitura da
Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro (Lei de Bases do Património Cultural), cujo
âmbito e conteúdo demora erudito, académico, restrito e elitista. O artigo 84.º
é expressamente dedicado ao “património fonográfico”, contradição que parece
ter deixado o legislador indiferente. A conclusão é óbvia, o Estado não pode
declarar património já constituído aquilo que não conhece e que ainda não detém
na sua esfera. Estaria o legislador a referir-se aos arquivos da RTP no todo ou
em parte (arquivos audiovisuais), aos arquivos da RDP, aos arquivos da
Cinemateca Portuguesa ou a eventuais protocolos a celebrar entre o Estado e os
detentores de acervos sonoros privados? Estaria o legislador a pensar na
institucionalização de um organismo vocacionado para a recolha, custódia,
tratamento, comunicação aos cidadãos e reedição regular de fontes raras ou
esgotadas?
Seja como for, o texto positivado no n.º 1) do
artigo 89.º padece de imprecisões quando verbera “integram o património
fonográfico as séries de sons fixadas sobre qualquer suporte”, ou se reporta a
“interesse cultural relevante”, cujo âmbito não é clarificado satisfatoriamente.
Nas demais alíneas, onde predominam critérios elitistas (“notabilidade”,
“relevantes”), e centralistas, parece concluir-se que este articulado poderá
ter sido escrito por um técnico de cinemateca ou de museu mas não por alguém
suficientemente conhecedor da realidade subjacente aos arquivos sonoros. O n.º
2) sanciona a contradição acima referenciada quando postula “As séries de sons
amadores podem ser incluídas no património fonográfico, nos termos da lei”.
Foram estas pérolas preparadas e escritas numa
conjuntura em que a UNESCO pusera a nu as insuficiências e vulnerabilidades do
arquivo público sonoro como mero depósito/armazém central-custodial” onde se
desenvolvia uma modesta e anónima actividade técnica tributária das práticas de
biblioteconomia (recolher, catalogar, conservar, comunicar), arredada de uma
visão sistémica do arquivo sonoro como infra-estrutura na comunidade, ao
serviço da comunidade e desenhado por representantes da comunidade.
Em paralelo, a UNESCO e alguns centros internacionais
de referência vinham a discutir as fronteiras do arquivo sonoro
em função de realidades emergentes como as recolhas etnomusicológicas,
as histórias de vidas, a história oral, o registo geral de um corpus oral
assente no estudo das línguas, falares e fonéticas regionais,
as paisagens sonoras
e os territórios intangíveis, os audiovisuais, os arquivos radiofónicos,
as bases de dados
e a criação de redes digitais de arquivos sonoros,
os movimentos migratórios, o colonialismo e a aculturação.
As elites e as universidades portuguesas não
acompanharam propriamente este movimento nem marcaram presença nos encontros
internacionais de discussão da problemática e enunciação de estratégias
vocacionadas para os desafios polarizados pelos arquivos sonoros e audiovisuais.
Os bens fonográficos enquanto património
público constituendo preocuparam o legislador que esteve por detrás do primeiro
regime geral do património cultural. Contudo os bens fonográficos,
primeiramente individualizados na alínea e) do número 1 do artigo 43.º da Lei
n.º 13/85, de 6 de Julho, não chegam a ocupar o mesmo patamar de importância
conferido às fotografias, aos filmes, às estações arqueológicas e aos
monumentos arquitectónicos. O diploma que lhe sucedeu, Lei n.º 107/2001, de 8
de Setembro (Lei de bases do património cultural português) individualiza
diversos tipos de património. No n.º 1 do artigo 89.º cura-se do “património
fonográfico”: “integram o património fonográfico as séries de sons fixadas
sobre qualquer suporte, bem como as geradas ou reproduzidas em qualquer tipo de
aplicação informática ou informatizada, também em suporte virtual, e que, tendo
sido realizadas para fins de comunicação, distribuição ao público ou de
documentação, se revistam de interesse cultural relevante ou preencham pelo
menos um dos seguintes requisitos:
a) Hajam resultado de
produções nacionais ou de produções estrangeiras relacionadas com a realidade
portuguesa;
b) Integrem,
independentemente da nacionalidade da produção, colecções ou espólios
conservados em instituições públicas ou que, independentemente da natureza
jurídica do detentor, se distingam pela sua notabilidade;
c) Representem ou
testemunhem vivências ou factos nacionais relevantes.
2 – As séries de sons amadores podem ser
incluídas no património fonográfico, nos termos da lei”.
Conforme atestam as transcrições supra, o
articulado é confuso, impreciso,
nacionalista, centralista e marcado por incorrecções. Não tendo ocorrido
regulamentação ulterior da matéria positivada, ficam por clarificar:
- Qual
seja o organismo responsável pela definição, implementação e monitorização
das políticas públicas em matéria de arquivos sonoros. A ausência de
instituição legítima (central-uninucleada, central polinucleada ou
descentralizada) significou a inexistência de uma política
fono-arquivística pública no século XX;
- Qual
possa ser o regime geral das incorporações a implementar. Os “espólios
conservados nas instituições públicas” como a Universidade de Coimbra, o
Museu do Teatro e o Arquivo da RDP são compulsivamente transferidos para
um arquivo custodial central? Ou são apenas remasterizados e o Estado fica
com as reproduções? Os acervos sonoros de rádios privadas como a Rádio
Renascença são nacionalizados ou são avaliados e selectivamente
remasterizados? Os arquivos desenvolvidos por particulares no âmbito de
campanhas etno-musicológicas, como os de Michel Giacometti (1929-1990),
Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990) e José Alberto Sardinha são
nacionalizados, mantidos junto dos seus proprietários ou editados com a
comparticipação do Estado? Os arquivos de editoras longamente dedicadas à
edição de registos de grupos folclóricos, como a Edisco, sucessora da
Rapsódia, são transferidos para o Estado, remasterizados e editados com a
comparticipação do Estado ou ficam à margem do projecto? O acervo sonoro
do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra é
relevante para um projecto de arquivo sonoro nacional? Trechos de bandas
sonoras de filmes e de programas televisivos devem ser considerados
testemunhos incontornáveis a incluir num arquivo sonoro?
- Onde
começa e acaba o âmbito de um arquivo sonoro? Apenas registos vocais e
instrumentais de obras musicais sejam eles comerciais ou amadores?
Discursos de políticos e estadistas? Teatro radiofónico? Programas de
entretenimento como discos pedidos? Campanhas de recolhas de sons da
tradição rural e comunitária? Registos associados a trabalhos etnográficos
levados a cabo nas antigas colónias portuguesas?
Entrevistas de actualidades? Testemunhos de vidas, catástrofes, guerras?
Registos dos mais variados géneros musicais praticados à escala global?
Gravações domésticas de ensaios de grupos musicais? Edição, circulação e
consumo de música ligeira de entretenimento de massas e de tunas
académicas,
que apesar de desconsiderada pelas elites, patenteia elevado grau de
acolhimento entre os estudantes do ensino superior, emigrantes e
comunidades provinciais?
- O
que são fonogramas que se “distingam pela sua notabilidade”? A valoração
do conceito de “registo notável” varia fortemente em função das
representações sócio-culturais das elites urbanas e dos membros das
comunidades tradicionais. Um fado gravado no Brasil em 1908, com sotaque
brasileiro, a narrar a morte do rei D. Carlos de Bragança, pode ser tão
importante para o investigador como um discurso radiofónico do ditador
António de Oliveira Salazar. Um curto registo do etnógrafo Ernesto Veiga
de Oliveira, captado numa oficina de violaria de Coimbra à entrada da
década de 1960, com o violeiro a exemplificar a técnica de afinação e de
toque da viola toeira em rasgado e em ponteado, pela sua raridade
testemunhal é um documento notável, relevante e único. Registos domésticos
da actuação do grupo do guitarrista Artur Paredes na Emissora Nacional em
1940 são documentos únicos, relevantes e notáveis uma vez que testemunham
a performance do artista naquela data e suprem a total ausência de
registos no arquivo daquela rádio. O critério de uma relevância a priori
assevera-se um não critério, na medida em que deixa ao arbítrio dos intelectuais
letrados dos órgãos da administração central a legitimidade para proclamar
o que possa ser a relevância, ao mesmo tempo que instaura como critério
dominante o predomínio da cultura urbana sobre as subculturas,
contra-culturas e culturas orais, tradicionais e periféricas.
No conspecto da legislação portuguesa que
dispõe sobre fontes sonoras refira-se ainda a Portaria n.º 196/2010, de 9 de
Abril, que veio definir os procedimentos para a inventariação do património
cultural imaterial. O formulário-tipo, respaldado nas recomendações UNESCO,
abrange manifestações sonoras com cariz de espectáculo e divertimento,
manifestações musicais e manifestações etnográficas, sem precisar se o
Ministério da Cultura apostará na institucionalização de um arquivo sonoro
destinado a custodiar os registos que possam vir a ser efectuados e entregues a
título de suporte de projectos de classificação.
2. Alguns
arquivos sonoros existentes em Portugal
Importa agora deixar informe de uns quantos
arquivos sonoros existentes em Portugal, que pela sua natureza e diversidade
devem ser considerados em qualquer arquitectura que se venha a estabelecer para
um arquivo público português de sons.
- Arquivos Sonoros Portugueses, projecto de
recolha, divulgação e salvaguarda da música tradicional portuguesa provincial
ideado pelo etnólogo Michel Giacometti (1929-1990) em Dezembro de 1960.
Contou com a colaboração do músico Fernando Lopes Graça (1906-1994) e
conseguiu editar 24 discos de vinil entre 1960-1983. Em 22.11.2010 a
TradiSom, de parceria com o jornal Público,
iniciou a reedição em 12 volumes da Filmografia
completa de Michel Giacometti, que inclui a recuperação da série
televisiva Povo que Canta,
exibida na RTP entre 1970-1974.
Acervo vastíssimo,
integra canções de trabalho, cantigas de infância, cânticos de Natal, música
associada a teatro popular, ritos fúnebres, festividades marianas e do Espírito
Santo e execução de instrumentos musicais. Adquirida pela Câmara Municipal de
Cascais, a colecção sonora Giacometti tem sido alvo de reedições e encontra-se
sob custódia do Museu da Música de Cascais. Até ao momento, não consta que o
Ministério da Cultura tenha firmado qualquer protocolo para a edição conjunta
deste arquivo e sua disponibilização aos investigadores, escolas ou agremiações
cívicas vocacionadas para a defesa do património imaterial.
- Registo Fonográfico dos Açores, projecto
desenvolvido pelo Governo Regional dos Açores, alojado no sítio Centro do
Conhecimento dos Açores.
Na sua primeira fase, o arquivo sonoro dos Açores estruturou-se com base
no Acervo do Rádio Clube de Angra do Heroísmo, Acervo do Clube Asas do
Atlântico e Colecção José Noronha Bretão. Espólio inventariado,
remasterizado e disponibilizado para consulta presencial nos pontos de
acesso da Direcção Regional da Cultural, disponibiliza inventários em
linha e amostras de audições. A Colecção Bretão inclui registos efectuados
ao longo de três décadas sobre manifestações da cultura popular da Ilha
Terceira como danças de Entrudo e comédias de amadores. O Registo Fonográfico dos Açores. Espólio
Clube Asas do Atlântico [Em linha]. DRAC-CCA, acessível no endereço
WWW: <URL: <http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/audio/Listagem%20do%20Espolio%20-%20CCA>, é um inventário
de registos de fado, folclore açoriano, orfeãos, tunas, bandas
filarmónicas, teatro radiofónico, programas, discursos, declamações,
publicidade e espectáculos ao vivo. O Registo
Fonográfico dos Açores. Espólio Rádio Clube de Angra [Em linha].
DRAC-CCA, disponível em WWW: <URL: <http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/audio/Listagem%20do%Espolio%20-%20RCA.pdf>, procede à
inventariação de mais de meio século de canções, congressos, entrevistas,
fados, folclore açoriano, corais, tunas, bandas filarmónicas, teatro,
palestras, poesia, desporto, noticiários, discursos e actos eleitoriais.
- Arquivo da Rádio Difusão Portuguesa. O Arquivo
Histórico da Emissora Nacional/RDP foi criado em 1971, na então sede da
Rua do Quelhas, Lisboa. Integra variados registos de música e programas
radiofónicos, remontando os mais antigos a 1937. Por força do disposto no
Decreto-Lei n.º 674-C/75, de 2 de Dezembro, que nacionalizou as rádios
privadas e criou a RDP, o arquivo central passou a integrar o acervo
remanescente da Emissora Nacional, do Rádio Clube Português e dos
Emissores Associados de Lisboa. Em 2003 a RDP (e as suas estações filiais)
foi fundida com a RTP na holding Rádio e Televisão de Portugal, SGPS, SA.
O Arquivo RDP funciona no edifício sede da holding, na Rua Marechal Gomes
da Costa, n.º 37, Lisboa, integrado na Direcção de Serviços da Rádio
Televisão. As delegações regionais de Faro, Porto, Madeira e Açores continuam
a custodiar os respectivos acervos sonoros, com excepção de Coimbra que
remeteu a discografia vinil à Fonoteca Municipal de Coimbra. Integram este
arquivo as campanhas de registo de música regional levadas a cabo por
Armando Leça em 1939-1940.
- Arquivo Sonoro do Museu Académico de
Coimbra.
Fundada em 1951, esta instituição começou a receber ainda na década de
1950 fonogramas de 78 rpm, instrumentos musicais ligados à prática da
Canção de Coimbra nos séculos XIX e XX e partituras de música impressa.
Delapidado aquando da Revolução de 1974, o acervo sonoro viria a ser
substancialmente alargado na década de 1990 graças às ofertas de
familiares de antigos estudantes e dos próprios cultores: séries Odeon de
António Menano, colecção do cantor António Batoque, colecção do Juiz
Conselheiro Perestrelo Botelheiro, colecção do estudante radicado no
Brasil Divaldo Gaspar de Freitas. Entre os artistas amadores mais
representados dos anos áureos do 78 rpm contam-se António Menano, Edmundo
Bettencourt, Artur Paredes, Artur de Almeida d’Eça, António Batoque e
Lucas Junot. O Museu Académico de Coimbra elaborou na década de 1990 um
inventário manuscrito do acervo sonoro existente.
- Arquivo [do etnomusicólogo] José Alberto
Sardinha,
jurista, recolector, estudioso e difusor de manifestações da música
tradicional portuguesa em processo de desaparecimento. Detentor de um dos
mais vastos e completos arquivos particulares com reproduções de fontes
gravadas e recolhas de campo em todas as regiões de Portugal continental e
insular.
Tem vindo a divulgar parte do acervo, primeiro em Lps, depois em cds de
apoio a monografias impressas, cumprindo destacar pelo seu alcance
cultural: Portugal. Raízes Musicais.
Porto: Jornal de Notícias, 1996-1997, com 6 cds anexos; Tradições Musicais da Estremadura.
Vila Verde: Tradisom, 2000, com 3 cds de apoio; A Viola Campaniça. O outro Alentejo. Vila Verde: Tradisom,
2001, com 2 cds; Tunas do Marão.
Vila Verde: Tradisom, 2005, com 4 cds; A
origem do Fado. Vila Verde: Tradisom, 2010, com 4 cds.
- Arquivos Sonoros de Ernesto Veiga de
Oliveira, Benjamim Pereira (1960/1963). Integra 446 registos de campo
efectuados com gravador de bobines em Portugal continental, Madeira e
Açores, para suporte do levantamento geral dos instrumentos musicais
tradicionais portugueses.
Pertence ao acervo do Museu Nacional de Etnologia, Lisboa. Tratado por
Domingos Morais em 2000-2001, foi digitalizado e encontra-se acessível no
sítio WWW: <URL: http://alfarrabio.di.uminho.pt/arqevo/arqetnoevo.html>. O inventário
de registos sonoros vem ali designado por “catálogo geral”.
3. As fonotecas/discotecas
Nos anos que se seguiram à Revolução de 1974 as
mais importantes bibliotecas portuguesas públicas e privadas mantiveram os
traços de cultura organizacional herdados do período anterior. Os utentes de
qualquer faixa etária eram obrigados a passar por um conjunto de ritos
iniciáticos marcados por dispositivos de controlo burocrático e disciplinar. A
pesquisa nos ficheiros de gavetas com base em fichas cartonadas era penosa e a
entrega das obras requisitadas em sala de leitura chegava a demorar perto de
trinta minutos.
Configuravam o paradigma custodial clássico a
Biblioteca Municipal de Coimbra (instalada no claustro do Mosteiro de Santa
Cruz), a Biblioteca Municipal do Porto, a Biblioteca Nacional ou a Biblioteca
Geral da Universidade de Coimbra. O acesso às salas de reservados impunha a
observância de ritos de controlo do corpo do utente, postulava burocracias
pouco amistosas e obrigava a uma rigorosa justificação prévia dos fundamentos
da consulta, cujo acesso podia ser negado pelo dirigente da instituição.
Nas décadas de 1980-1990 experimentaram-se em
Portugal novos conceitos de biblioteca assentes nos princípios da
transparência, acesso ao conhecimento, fruição, proximidade e inclusão dos
cidadãos idosos e portadores de deficiência. As estruturas físicas
compartimentadas deram lugar a espaços abertos, com possibilidades de
visualização/acesso imediato às obras, selfservice em sala, formação
especializada dos funcionários segundo parâmetros de qualidade e satisfação dos
utentes, oferta de multizonamentos fruidores (espaço filme, espaço música,
espaço jogos, espaço pesquisa informática, espaço narrativa/hora do
conto/declamação, momentos de encontro com autores literários, espaço
infantil). O atendimento ao público foi melhorado e as bibliotecas apostaram em
estratégias de marketing institucional.
A biblioteca clássica, austera, distante,
organizada para servir as elites e os docentes de ensino superior
democratizou-se. Da biblioteca tout court, ou da biblioteca-depósito custodial,
passou-se para uma ideia integrada de casa de cultura e centro comunitário de
recursos onde adquiriram grande visibilidade o chamado “material não livro”.
Exemplificam esta nova realidade a Casa da Cultura de Coimbra (biblioteca,
hemeroteca, imagoteca, fonoteca, galeria de exposições), diversas bibliotecas
municipais inauguradas na década de 1990 e as redes de bibliotecas/centros de
recursos das escolas tuteladas pelo Ministério da Educação.
Iniciativas referenciais no âmbito dos serviços
culturais prestados às populações, as fonotecas municipais afirmaram-se como
espaços acolhedores que exibem compact discs e dvds em expositores,
possibilitam a audição de matrizes sonoras e proporcionam momentos de lazer.
Atente-se na Fonoteca Municipal de Coimbra
(FMC), localizada na Casa da Cultura,
que tem vindo a promover uma política de exposições, aquisição de espólios e
reprodução de fontes sonoras antigas mediante acordo com coleccionadores. Em 2003, a FMC recebeu o
acervo discográfico vinil do antigo Emissor Regional de Coimbra/RDP-Centro,
constituído por cerca de 22.000 discos. Em 2010, a FMC funcionava como
valência integrada da Biblioteca Municipal de Coimbra, disponibilizando o
Acervo do Emissor Regional de Coimbra/RDP-Centro, e perto de 62.000 cds e dvds
distribuídos por Músicas Tradicionais, World Music, Jazz e Blues, Rock, Música
Clássica, Música Contemporânea, Músicas Funcionais, fonogramas não musicais e
fonogramas para crianças. Os chamados “géneros” – que como se verá, de géneros
têm muito pouco -, são catalogados segundo critérios biblioteconómicos,
arrumados em expositores por grandes “áreas”, e nestas alfabeticamente por
intérpretes e compositores.
O designativo escolhido para identificar esta
nova realidade portuguesa foi o vocábulo fonoteca. A palavra não será a mais
feliz, pois remete grosso modo para a ideia de biblioteca de sons ou para a
atmosfera mercantil de colecção de fonogramas produzidos por uma determinada
editora licenciada para fins de exploração de uma marca. Excluída ficou a
palavra discoteca, não obstante a sua consagração em França para designar a
mesma realidade (discothèque). Em Portugal, discoteca não significava
propriamente “biblioteca de discos”. Numa primeira e mais antiga designação,
remontante pelo menos ao primeiro terço do século XX, discoteca usou-se para
identificar as casas de comércio estabelecidas nas vilas e cidades onde se
vendiam e compravam discos portugueses e importados, cassetes, leitores de
rádio e aparelhagens sonoras.
Fonoteca começou por ter um uso muito restrito
no âmbito da emergência e consolidação das grandes estações públicas de
radiodifusão que se afirmaram nos cenários nacionais e internacionais na década
de 1930. No caso da Emissora Nacional e das suas filiais, os emissores
regionais de Coimbra, Porto e Faro, a fonoteca era tão somente o depósito
físico onde estavam arrumadas e prontas para utilização as colecções de discos
de 78 rpm, as bobines de fita e diversos materiais virgens e em uso (suportes
gravados, suportes regravados, suportes virgens, aparelhagens, microfones,
materiais para produção de efeitos sonoros especiais em estúdio).
Por vezes algumas casas de venda de fonogramas
funcionavam como gravadoras e editoras, servindo de exemplo a Orfeu de Arnaldo
Trindade, com actividade documentada entre as décadas de 1960-1990 na Rua de
Santa Catarina e na Rua 31 de Janeiro, no Porto. A casa de Arnaldo Trindade
contratava artistas amadores e profissionais, gravava, editava, importava
fonogramas, reeditava e simultaneamente vendia aos clientes gira-discos,
aparelhagens sonoras, cassetes, leitores de cassetes, aparelhos de rádio, agulhas
de ponta de diamante, escovas de limpeza de discos, colunas de amplificação
sonora, material eléctrico, microfones e variados electrodomésticos.
Em Lisboa, Coimbra, Porto e Braga funcionaram
discotecas que vendiam brochuras de música impressa, bicicletas, máquinas de
costura, gramofones e outros produtos. Por exemplo, a Sociedade Fabricante de
Discos SIMPLEX, com abundantes anúncios na revista mundana Ilustração Portuguesa no decurso de 1910, com lojas na Rua do
Socorro, n.º 23-B, Lisboa, e na Rua de Santo Antão, 32 a 34, marca licenciada a J.
Castelo-Branco, vendia ao balcão e por encomenda postal. O anúncio referia
reportórios impressos, discos de dupla face da marca, discos de outras marcas,
bicicletas e gramofones.
A Compagnie Française du Gramophone,
estabelecida na Rue Blue, n.º 15, Paris, tendo ficado responsável em 1901 pelo
mercado espanhol, português e belga, abriu em 1903 filiais em Lisboa, Porto e
Braga. Os agentes portugueses de Lisboa e do Porto já tinham casas comerciais
abertas, tendo-se limitado a nelas instalar improvisados estúdios de gravação e
a importar e exportar os artigos fonográficos, dispensando o registo da marca
na Repartição da Propriedade Industrial.
Uma segunda acepção conhecida para a palavra
discoteca, consagrada na segunda metade do século XX, prende-se com o
licenciamento e exploração de salões de dança associados ao funcionamento
nocturno de bares, com ou sem programação de negócios ligados ao sexo.
Sendo as bibliotecas espaços conotados com a
cultura letrada, que se revêem numa missão civilizadora, compreende-se a
prevalência do vocábulo fonoteca bem como a distância a que quiseram colocar-se
das actividades comerciais que proliferam à sombra da ideia de discoteca.
A principal vulnerabilidade das fonotecas enquanto
realidade cultural-material instituída no conspecto de políticas municipais e
escolares radica na confusão identitária subjacente à sua natureza e missão.
Arquivos sonoros ou bibliotecas sonoras que se limitam a reproduzir os
procedimentos consagrados internacionalmente no âmbito da biblioteconomia? Uma
visita aos espaços públicos existentes em Portugal, com pesquisa associada, no
local ou em linha, leva-nos a concluir que os técnicos afectos às fonotecas
aplicaram a estes novos serviços, por analogia insuficientemente questionada,
as práticas e procedimentos profissionais específicos da área de biblioteca.
É o que parece colher-se da divisão intelectual artificiosa das matérias
gravadas e expostas aos utentes e da classificação das unidades de instalação
com recurso às normas portuguesas de catalogação.
Com efeito, o afã de normalização de
procedimentos conduziu a uma generalização acrítica das Regras Portuguesas de
Catalogação (1994) àquilo a que na linguagem dos técnicos de biblioteca se
identifica por “material não livro”,
designação imprecisa onde podem caber bens como partituras impressas, cartazes,
postais, calendários, discografia, compact disc, dvds, cassetes de vídeo e
jogos didácticos.
A operação de catalogação tem vindo a fazer-se
com base nas recomendações da ISBD-PM (International
Standard Bibliographic Description for non Book Material: 1977),
e da International Standard Bibliography
Description for Printed Music (1980), que combinadas com o código UNIMARC
conduziram ao preenchimento de uma ficha estandardizada assente em níveis de
acesso e cotagem das unidades de instalação conforme disposições CDU, com a
prática empírica a invadir o vazio teórico, conceptual e metodológico nos
arquivos sonoros.
Algumas fonotecas e centros de recursos escolares
combinam a Tabela de Classificação Decimal Universal com a classificação para
registos sonoros adoptada nas fonotecas da cidade de Paris. Tomemos um exemplo.
No caso da Biblioteca Escolar (e) Centro de Recursos Educativos da Escola EB2,3
Padre Alberto Neto,
foram definidas 9 classes associadas a uma tabela cromática e a
géneros/tendências musicais reunidas arbitrariamente e com escasso conhecimento
da complexidade e multiplicidade das paisagens musicais e sonoras:
Classe 0: verde-claro, música portuguesa,
música de inspiração tradicional, música étnica
Classe 1: amarelo, jazz e blues
Classe 2: vermelho, pop e rock
Classe 3: azul-claro, música clássica
Classe 4: cinzento, novas linguagens musicais
Classe 5: azul-escuro, bandas sonoras, música
de espectáculo, música de Natal
Classe 6: verde-escuro, programas não musicais
Classe 7: cor-de-rosa, música infantil e
juvenil
Classe 8: lilás, ciências e técnicas musicais.
Permita-se-nos discordar do critério
generalizado de catalogação de objectos sonoros analógicos e digitais.
Cilindros, discos, cassetes, compact discs e discos-livros não são livros tout
court. Como tal, o trabalho de descrição, classificação e cotagem deve seguir
as regras já acreditadas pela arquivística, com as devidas adaptações, e não os
procedimentos técnicos da biblioteconomia tradicionalmente vocacionados para a
identificação de espécimes isolados.
No que respeita a boas práticas em arquivos
sonoros, haverá lugar a guias de fundos, inventários gerais de colecções e
inventários específicos. Os catálogos de discos são linguagem usual nas
práticas biblioteconómicas, nas editoras e nas casas de comercialização de
fonogramas.
Os catálogos impressos de cilindros Edison,
irromperam no mercado a partir da década de 1880 nos EUA, alargando-se depois
aos cilindros Columbia, aos discos planos Berliner, limitando-se a seguir a
lógica publicitária consagrada nos estabelecimentos comerciais e industriais.
A Columbia Phonograph Company, fundada em 1888, editou o seu primeiro catálogo
comercial de cilindros de cera em 1891 com dez páginas.
Enquanto instrumento de promoção comercial de
vendas no local ou por encomenda e de sedução e fidelização de clientes, o
catálogo fazia publicidade ao nome dos artistas contratados e divulgava listas
impressas de títulos gravados e disponíveis para venda, associando o número de
série da etiqueta ao título.
Por muito úteis que possam ser para aos
investigadores, os catálogos fonográficos editados entre circa 1890-1930 não
são inventários de registos fonográficos em sentido arquivístico. Pondo-os no
seu lugar, poderão funcionar como importantes instrumentos de promoção de
políticas culturais, quando utilizados como catálogos de exposições associados
à reprodução de etiquetas de época, fotografias de artistas profissionais e
amadores, documentos de recolectores, aparelhagens de fixação e reprodução de
sons, capas ilustradas de discos e objectos multédia com disponibilização de
remasterizações.
À época da emergência dos primeiros registos
sonoros por meios mecânicos havia catálogos idênticos para roupas do
pronto-a-vestir, máquinas de costura Singer, máquinas de dactilografar, e foi à
luz desta lógica que se começaram a produzir “catálogos” de cilindros e de
discos planos de uma e de duas faces.
Também não consideramos transponível para a
esfera dos arquivos sonoros o “catálogo” usado como instrumento arquivístico a
que se refere a lição clássica de Antónia Herrera. Neste peculiar sentido, o
catálogo arquivístico é visto como um instrumento especializado e detalhado de
identificação e descrição de uma série documental, subsérie, processo ou
documento solto.
É chegado o momento de fazer um breve
parêntesis no que se vem tecendo para descortinar as raízes das práticas
catalográficas nos arquivos documentais e sonoros. Em Portugal, a longa
ausência de instrumentos de descrição e classificação arquivística levou os
conservadores de arquivo e os paleógrafos dos anos áureos do positivismo a
“catalogar” singularmente bulas, cartas e diplomas resultantes das grandes incorporações
de massas documentais levadas a cabo entre 1834-1910 pelo Estado.
Pesou e muito nesta opção o facto de os
arquivos dos ministérios criados ou reformados durante a Monarquia
Constitucional estarem a cargo dos bibliotecários das secretarias-gerais, numa
posição claramente secundarizada e subsidiária das práticas de biblioteconomia.
O Decreto de 21.4.1842, que dispõe sobre o Arquivo da Secretaria de Estado da
Marinha, fala na organização de catálogos. O Decreto de 8.9.1959, que organiza
o arquivo do Ministério do Reino (Administração Interna) fala na catalogação
dos livros de expediente. A reforma republicana da Biblioteca Nacional de 1918
apontava para a produção e publicação de normas de catalogação extensivas a
todo o tipo de acervos, arquivos inclusos, sendo que nesta época as bibliotecas
públicas serviam de depósitos custodiais quando inexistisse arquivo público
constituído como tal. O Decreto n.º 13.724, de 27.5.1927, trouxe em anexo as
“Normas para serviço de catalogação”, da lavra de Raul Proença, que passaram a
ser aplicadas ao chamado “material não livro” como os documentos manuscritos.
A historiadora dos arquivos públicos
portugueses, Fernanda Ribeiro, criticou severamente as práticas de
biblioteconomia que foram abusivamente aplicadas para identificar documentos
soltos, longevamente ensinadas nos cursos de especialização até à década de
1970.
Determinante na reprodução acrítica das
práticas catalográficas na Europa e na América foi a posição de predomínio
exercida pelos bibliotecários e arquivistas franceses junto da UNESCO, em
Paris. A posição hegemónica de que gozaram no após Segunda Guerra Mundial na
elaboração e difusão de instrumentos uniformizadores e normalizadores impôs a
catalogação nos arquivos sonoros como algo de “natural” e “normal” nos meandros
do sistema cultural burguês ocidental. O documento matricial remete-nos para
LASZLO, Lajtha (prefácio) - Archives de
la musique enregistrée. Collection Phonothèque Nacional (Paris). Catalogue des
Arts et Traditions Populaires. Série C. Musique Ethnographique et Folklorique.
Paris: UNESCO, 1952.
Voltemos às fonotecas e mediatecas e vejamos
das práticas instrumentalizadas. Em alguns centros de recursos, com fonotecas
integradas, é comum a prática de carimbagem das unidades de instalação, usando-se
o carimbo de registo (n.º de entrada e cota), o carimbo de posse institucional
(nome da entidade detentora) e ainda o carimbo relativo ao modo de aquisição
(oferta, compra).
Seguindo os procedimentos adoptados na
Biblioteca Escolar e Centro de Recursos Educativos do Agrupamento de Escolas da
Abrigada (Alenquer),
para o chamado “material não livro”, confirma-se o recurso generalizado aos
campos da ISBD, aplicado a cinco tipologias, nas quais se incluem “registos
sonoros em qualquer suporte”. O “fundo áudio” congrega gravações de música
popular, música erudita, declamação, discursos de políticos, entrevistas,
ensino de línguas e “livros falados”.
Exemplifiquemos um registo, cuja entrada
principal é feita pelo nome do responsável intelectual e artístico da obra
gravada. A descrição em folha de recolha segue, por analogia, as regras
aplicadas à descrição bibliográfica:
VEIGA, Anthero Dias Alte da, político e
guitarrista (1866-1960)
Anthero da Veiga. Guitarra de Coimbra [Registo
sonoro]; Coimbra/Remasterização de Fado Melódico, Variações do Fado em Ré
menor, Cantos Regionais Portugueses, Bailes Regionais Portugueses/ Solos de
guitarra/Acompanhado por Eugénio da Veiga em 2.ª guitarra
2010. -1 disco óptico (CD): 1 livreto assinado
por Jorge Cravo
Música portuguesa/Canção de Coimbra
Classe:
Cota:
As práticas escalpelizadas, não obstante o
recurso a normas orientadoras de alcance internacional, continuam demasiado
próximas do que seria desejável da forma de arrumação dos objectos fono-sonoros
disponíveis para consumo nos grandes hipermercados e superfícies comerciais:
segmentação em “grandes géneros musicais” produzidos em função de estudos de
mercado vocacionados para a auscultação e satisfação dos gostos dos
consumidores, imposição de gostos exóticos como géneros musicais não
legitimados pelos estudos musicológicos e etno-musicológicos, confusão entre
música de fábrica local e produtos comerciais urbanos de fusão de sonoridades,
arrumação alfabética de compositores ou de artistas executantes na “gaveta”/”prateleira”
concebida e imposta para um determinado género.
Grande parte dos chamados “géneros” musicais
exibidos nos escaparates das superfícies comerciais capitalistas são puras
ficções. O artificialismo a que nos referimos encontra-se generalizado nas fonotecas
municipais francesas, suíças e brasileiras.
No caso específico das duas bibliotecas municipais em funcionamento na cidade
de Genebra no ano de 2010, os cerca de 70.000 registos sonoros existentes são
enquadrados nas seguintes macro-classificações temáticas: 1) Musique Classique,
Ancienne, Baroque et Contemporaine; 2) Pop Rock, Hip-Hop, Soul, Disco, Musiques
Electroniques; 3) Jazz, Blues, Gospel; 4) Chanson Francophone; 5) Musiques du
Monde; 6) Musique de Films; 7) Musique d’ambiance, bruitages; 8) Musique por
enfants.
A classificação temática proposta é artificial e aberrante. Os enunciados nas
alíneas 4 a
8 tampouco são géneros musicais.
A Fonoteca Municipal de Lisboa segue de perto
as práticas ocidentais normalizadas. Disponibiliza audição de registos sonoros
musicais, registos sonoros não musicais (poemas, entrevistas, histórias
infantis), monografias técnicas, partituras de música impressa, revistas e
periódicos e material multimédia. Possibilita a audição em sala de cerca de
23.500 compact disc, cerca de 800 dvds e Cd-Rom.
O chamado “material não livro” é catalogado,
descrito, classificado e exposto fisicamente em conformidade com as práticas
biblioteconómicas consagradas. Esta instituição organizou o seu acervo em nove
áreas temáticas que não obedecem a sólidos critérios etnomusicológicos ou
histórico-musicológicos. Fica patente a confusão entre géneros musicais,
expressões ambíguas (“música erudita” não é um género musical), tendências,
modas e expressões equívocas (“música funcional”, “fonogramas infantis”).
3. Em
busca de um arquivo sonoro
Não sendo as fonotecas existentes em Portugal
arquivos sonoros públicos, nem estando constituído na Biblioteca Nacional
qualquer arquivo sonoro resultante do cumprimento do regime geral de depósito
de fonogramas editados, importados e reeditados, continua por suprir a ausência
de um arquivo sonoro de Estado.
Constituído o XVII Governo Constitucional,
liderado pelo 1.º Ministro socialista José Sócrates, o Ministério da Cultura
passou a ser governado pela Ministra Maria Isabel Pires de Lima
e pelo Secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho. A questão da necessidade
de um arquivo sonoro público foi incluída no “Programa do XVII Governo
Constitucional. Capítulo II: Novas Políticas Sociais, II – Valorizar a
Cultura”, página 8, documento estratégico datado de 24 de Março de 2005.
No ponto relativo ao esclarecimento da
regulamentação e missão de cada serviço do Ministério da Cultura, previa-se:
-revisão urgente do regime de depósito legal;
-atenção reforçada “à preservação e valorização
do património fonográfico”, prevendo-se ainda a criação de uma estrutura
arquivística especializada.
A nova lei orgânica do Ministério da Cultura,
consignada no Decreto-Lei n.º 215/2006, de 27 de Outubro, procurava traduzir a
política de responsabilização proclamada por escrito no ano anterior,
concretamente na alínea g) do artigo 2.º ao clarificar que competia a este
departamento da administração central do Estado “salvaguardar e valorizar o
património fonográfico e das imagens em movimento”.
No artigo 17.º, sobre a Direcção-Geral da
Arquivos (DGARQ), ficou exarado “é a identidade coordenadora do sistema
nacional de arquivos, independentemente da forma e suporte de registo”,
enunciado conglobador que tomado ao pé da letra supõe a legitimidade de
supervisão da DGARQ sobre qualquer tipologia de arquivo público, incluindo a
Cinemateca e os arquivos da rádio e da televisão. É que em bom rigor, a lei
orgânica ora citada não contém nenhuma disposição que excepcione da supervisão da
DGARQ os arquivos sonoros e audiovisuais, embora pareça prevalecer tacitamente
um tal entendimento.
Fora das fronteiras desta esfera tem ficado
também a superintendência das actividades comerciais e industriais directamente
correlacionadas com a importação, fabrico e distribuição de fonogramas, que
pelo Decreto-Lei n.º 106-B/92, de 1 de Junho, e Decreto-Lei n.º 315/95, de 28
de Novembro, cometiam tal incumbência à Divisão de Filmes, Fonogramas e
Videogramas da Direcção-Geral dos Espectáculos e das Artes do Ministério da
Cultura.
Ciente da lacuna apontada e do embaraço que
causa nas relações interculturais, ainda em 2005 o Ministério da Cultura
designou uma comissão de trabalho para o “Estudo do Arquivo Nacional do Som”,
de que fizeram parte Salwa Castelo-Branco (Presidente), Joaquim Pais de Brito,
José Manuel Nunes, António Tilly dos Santos e António Paulo Rato.
Salwa Castelo-Branco, docente e investigadora
na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em
comunicação aos encontros sobre património imaterial português colocaria em
destaque o problema da não existência de um arquivo sonoro público, as
dificuldades que esta lacuna traz aos investigadores e evidenciou o estado de
dispersão dos acervos sonoros entre entidades públicas e detentores privados.
A autora citada e a equipa de trabalho
orientaram-se no sentido da criação de um arquivo custodial central, a designar
por Arquivo Fonográfico Nacional, que funcionaria como um departamento do Museu
da Música e do Som. Para responder à missão proposta, considerou-se que o Museu
da Música, instalado na Estação do Metropolitano de Lisboa de Alto de Moinhos,
teria de transitar para um edifício a construir de raiz para o efeito.
A coordenação do projecto ficaria a cargo do
Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa que apostava na
criação de uma rede integrada de entidades detentoras públicas e privadas como
universidades, museus, bibliotecas, rádios, coleccionadores e em especial na
colecção fonográfica de discos de 76 e 78 rpm do britânico Bruce Bastin.
Pertinentes, os objectivos preconizados pela
equipa liderada por Salwa Castelo-Branco puseram a nu as lacunas das políticas
culturais do Estado português, denunciaram o estado de dispersão dos acervos
fonográficos e as enormes dificuldades de acesso à informação em matéria de
fontes sonoras. São cem anos de história dos sons que os poderes públicos
negligenciaram, o que não é assim coisa pouca.
A ausência de estudos de referência em Portugal
sobre arquivos sonoros parece ter conduzido a equipa de projecto a uma
reprodução/naturalização dos paradigmas estruturantes dos arquivos custodiais
centrais da idade clássica, tomando-se substitutivamente as práticas da
arquivística técnica pelo saber reflectido sobre a natureza dos arquivos
sonoros.
É o que traduz o plano funcional gizado: 1)
recolha de “fundos”, inventariação e restauro de tecnologias de leitura; 2)
“arquivo”, ou seja, produção de instrumentos de normalização e recuperação de
informação comuns à arquivística/museologia descritiva de pendor positivista e
neo-positivista (catalogar, criar bases de dados, digitalizar sons); 3)
preservação e restauro (recurso aos normativos internacionais, nomeadamente
IASA); 4) investigação; 5) divulgação; 6) colaboração com entidades e
coleccionadores.
Com abertura prevista para 2009, nesse mesmo
ano a imprensa noticiou o abandono do projecto.
Justifica-se, após um século de ausência de
políticas públicas de recolhas de fontes sonoras, a criação de um arquivo
sonoro em Portugal?
A resposta é indubitavelmente positiva. Mas já não é assim tão claro se essa
infra-estrutura deve replicar na era pós-custodial o modelo centralista e
custodial da idade clássica, cuja avaliação global é bastante desencorajadora
no que tange aos arquivos analógicos.
A solução fonoteca como valência de biblioteca
é de evitar. A hipótese de um arquivo sonoro como serviço autónomo integrado
numa plataforma museológica dedicada à música e aos instrumentos musicais pode
fazer sentido. O mesmo acontece quanto à possibilidade de uma gestão integrada
arquivo de sons e objectos audiovisuais, fílmicos e multimédia. A necessidade
de boa vizinhança com bibliotecas detentoras de dicionários de música,
enciclopédias de autores e compositores, gabinete de música manuscrita,
partituras impressas, cancioneiros e monografias da especialidade, não suscita
controvérsia.
A opção pela nomenclatura “nacional”
corresponde a representações culturais ideologizadas que atingiram o auge de
representatitividade nos regimes autoritários que dominaram a Europa entre as
duas grandes guerras mundiais, posto o que caíram em descrédito. Algo como
“arquivo sonoro português” diz bem do que se trata.
A importação e naturalização acrítica de
modelos de sucesso em bibliotecas e museus não é seguramente metodologia
aconselhável. E menos ainda o será anteceder um projecto de arquivo de sons a
produção com a transmigração de instrumentos típicos da arquivística
descritiva, que tenta fazer crer que a teoria, os conceitos e a epistemologia
são supridos pela prática ou, no pior dos casos, tornam a teoria desnecessária.
Se não concordamos com catálogos, nem com a arrogância
transgénero dos instrumentos biblioteconómicos, também não consideramos que uma
resposta pret-a-porter repouse no Manual
de Descrição de Registos Sonoros e Audivisuais IASA
ou na Norma Mexicana de Catalogación de
Documentos Fonográficos.
Desde logo porque os arquivos sonoros de histórias de vidas e recolhas
etnomusicológicas colocam desafios que não se dilucidam com regras
apriorísticas. O mesmo acontece com os conceitos ainda mal apreendidos de
“paisagens sonoras” e de “arquivo participado pela comunidade”.
E estes aspectos radicais e incontornáveis
parece ter compreendido Josep Bargaló ao tratar da música tradicional da
Catalunha, quando nos campos de descrição vem sugerir o número indicativo do
“fonograma” (sic), a data de registo, o incipt literário, a função e
circunstâncias de execução, o sistema de execução, a identificação do
informante, o recolector, o material suporte e uma zona de observações/notas.
À luz do conceito de arquivo aberto, deixa de
fazer sentido que sejam apenas os intelectuais urbanos a dizer o que é e como
se deve organizar um arquivo público sonoro. De acordo com a lição de Huges de
Varine, as comunidades locais, através de iniciativas individuais e de
movimentos cívicos têm uma palavra a dizer no que respeita aos eco-arquivos,
aos ecomuseus,
à recolha e preservação dos corpora orais linguísticos e fonéticos, bem como à
definição das fronteiras do património sonoro que possa contribuir para a
construção ou revivificação das paisagens eco-sonoras.
Corridos 60 anos de apostolado em prol da
arquivística custodial, com esmagador predomínio das práticas de armazém e
produção de manuais bilingues de uniformização e normalização de procedimentos,
falta agora saber como é que a UNESCO conciliará o catecismo novecentista com
os aparentemente contraditórios princípios da Convenção sobre a promoção e protecção da diversidade das expressões
culturais (2005).
Passados que são vinte e três anos a lidar com
arquivos sonoros, mercê de incursões ao universo da Canção de Coimbra, com
arquivo ou sem arquivo público constituído, o que não pode aceitar-se como
cousa natural é a persistente indisponibilidade das fontes.
4. FONTES
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los archivos sonoros. [Em linha]. Articulo expuesto en el Primer Seminário
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